A Obra de Arte Literaria

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ROMAN

SNGARDEN

A OBRA DE ARTE LITERARIA

T r a d u ç ã o de A l b í n E. B e a u M a r i a da C on ceição P u ga João F. B a r r e n t o

P r e fá c io dè M a r ia M a n u e l a S a r a iv a

2 .11 ediçao

F U N D A Ç Ã O

C A L O U S T E

G U L B E N K I A N

|

LI S BO A

Prefácio à edição portuguesa

Haverá um conhecimento objectivo de uma obra literária, conhecimento certo, a distinguir de opiniões subjectivas e erra­ das? Román Ingarden faz a pergunta no § 6 1 deste livro. Alar­ gando o problema, interrogamos: poder-se-á falar de obras objectivamente difíceis, isto é, de difícil acesso a todo e qualquer le itor? Não o cremos, a não ser que se tome tal ideia como um caso-limite. Pois somos tentados a acreditar que Das literarische Kunstwerk o realiza bastante bem. Investigação rica mas prolixa, não raro obscura, desconcer­ tante na sua economia interna, o presente estudo desdobra-se em múltiplas linhas de fractura e convergência que irradiam de um terreno fenomenológico husserliano de base para perspectivas de natureza lingüística, lógica, estética, sem deixar de afirmar com insistência a pretensão de lançar as bases de uma ciência da literatura.

1 Este Prefácio foi escrito a .partir da leitura do original alemão, quando a tradução portuguesa não estava ainda concluída. Desconhecendo a paginação do volume português, não a podíamos citar. Mas citar a paginação alemã, além de criar confusões, seria de alguma utilidade?... Uma tradução destina-se, por definição, a um público que a prefere ao original por razões várias. O facto de o livro estar dividido não só em capítulos mas também em parágrafos forneceu-nos a solução do problema. Não é ideal, mas é a única de que dispomos. O parágrafo é geralmente curto, e neste caso a numeração não muda. Por isso citaremos sempre o parágrafo e o leitor descobrirá com relativa facilidade o texto, a teoria ou a problemática que estão em causa no nosso comentário. Algumas vezes faremos referências a Husserl e às suas Investigações Lógicas (Logische Untersuchungen). N o caso em que tivermos de fazer citações precisas damos em português o passo em questão, mas citamos a obra alemã, edição de 1913. A Obra de Arte Literária tem três Prefácios, o da primeira edição, em 1930, e os de 1960 e de 1965, respectivamente para ás segunda e terceira edições. Para simplificar, quando se trate do primeiro falaremos do Pre­ fácio de 1930, ou do Prefácio, simplesmente.

VIII Tudo isto em 1930, data da primeira -edição do volume que hoje sai a público em tradução portuguesa!2 Se toda a obra escrita é o espaço aberto e sempre disponível a uma infinidade de leituras diferentes, esta é-o certamente de múltiplas maneiras. Em prim eiro lugar, porque os diferentes leitores, sectorialmente situados em qualquer destes pontos de vista: literário, lingüístico, lógico, estético, filosófico..., farão, como é óbvio, a leitura para a qual os prepara a sua formação específica. Nada impede de imaginar o leitor ideal, nestes tempos em que tanto se fala de interdisciplinaridade. Não cremos, con­ tudo, que tal leitor exista ainda. E aqui temos um dos paradoxos desta obra paradoxal. Escrita em 1930, é natural verificarmos que está ultrapassada em vários dos sectores particulares de que releva, apesar das notas acrescentadas à segunda edição, de 1960. E, no entanto, o leitor para o qual foi escrita ainda não existe... Significa isto que ela vale sobretudo, em nosso entender, pelo seu valor exem­ plar. É difícil imaginar o que representa de ousadia e de novidade uma obra como esta que, ao querer lançar as bases de uma ciência por nascer (e, ao que parece, ainda hoje não nascida...), o faz numa tão vasta ambição de síntese. Tão vasta que não sabemos se admirar a grandeza do projecto ou nos admirarmos perante a sua ingenuidade. 2 0 ano de 1930 pode tomar-se como o marco aproximado que separa duas épocas, tanto em lingüística como em lógica. Em lingüística, o Cours... de Saussure havia já suscitado reflexões sobre signo, símbolo, significado, por parte de filósofos e de linguistas; mas de semântica, em sentido actual, não poderá falar-se ainda por longo tempo. Os primeiros trabalhos importantes da escola fonológica de Praga, base da lingüística estrutural, aparecem precisamente por esta altura. Dos três centros de onde irradia a renovação da lingüística e dos seus principais representantes — Trubetzkoy, Bloomfield, H jelm slev— era impossível ou pouco provável ter conhecimento em 1930. (Sem contar que a redacção de A O bra de A rte L ite rá ria começou em 1927.) Quanto ao chamado C írcu lo de Viena, os anos trinta são os da sua maior expansão (fundação da revista Erkenntnis, diáspora provocada pela perseguição nazi, organização de congressos internacionais). Uma nota ao § 18 de A Obra de A rte Literá ria , acrescentada em 1960, revela a oposição de Ingarden ao programa positivista do movimento — o que se compreende facilmente pelo que a seguir diremos. Aliás, não é a única referência ao C írcu lo de Viena. Essa nota, porém, tem especial interesse porque, ao lado de Carnap e de Wittgenstein, Ingar­ den refere-se a outra importante escola polaca de lógica, em que sobres­ saem os nomes de Lesniewski, Zukasiewcz, Tarski. Portanto, e como seria natural, conheceu o grupo de Varsóvia. N o entanto, ao falar, no Prefácio e noutros passos, da nova lógica, ou nova orientação em lógica, é a lógica fenomenológica que tem em mente.

Do valor estético da obra literária quase ninguém jala hoje. «Ainda não é formalizável, talvez dentro de cinqüenta anos...», disse-nos alguém que se move na zona de influência de A.-J. Greimas, durante o Seminário de Semiología, realizado no Verão de 71, em Urbino. Mesmo o conceito de obra literária se esfuma perante outros mais englobantes, como o de escrita. Quanto à aliança entre lingüística e lógica, só na década de 50, com o segundo Wittgenstein, Chomsky e outros, se voltou a tentar. Mas isto é terra prometida e mal vislumbrada para a maioria, mesmo nos nossos dias. E todos os problemas respeitantes ao «a u tor», de que neste livro se fala, embora com certa cautela e precaução? Ingarden ainda acreditava em tudo isso. Não deploramos o passado nem os sacrifícios epocais, que é por vezes indispensável consentir, para uma sempre maior radicalização de conceitos básicos, para a renovação, crescimento e reajustamento dos diferentes domínios do saber. Mas não dei­ xamos de sentir a urgência de certas recuperações fundamentais. Por isso desejaríamos ver neste livro, ultrapassado em certos sectores, um sinal precursor de uma nova, futura era, de unidade e síntese (onde estas forem possíveis), mas sobretudo menos redutora, mais englobante e fiel à complexidade do real. Fenomenología, lógica, estética... coisas a mais para o leitor médio de formação lingüística e literária, a quem se destina, afinal, esta colecção. É para ele este Prefácio. Pensamos que lhe falta o apetrechamento conceptual e terminológico de base para toda e qualquer leitura de A Obra de Arte Literária, se não dispõe de uma iniciação ã fenomenología husserliana. A brir o caminho a esta iniciação, mais precisamente, ao entendimento deste livro no terreno de onde nascem as suas raízes mais fundas, eis o que pretendemos em prim eiro lugar. Mas aqui as coisas complicam-se. P or um lado, Ingarden faz um apelo constante a noções fenomenológicas fundamentais: intencionalidade (acto de simples intenção, objecto intencional, correlato intencional,, factor de direcção intencional...), intuição, representação, preenchimento (Erfüllung), doação originária... N o entanto, quem leia o seu livro e esteja familiarizado com o pensamento do «venerado mestre» verifica que expressões idên­ ticas ou semelhantes às de Husserl podem recobrir realidades diferentes! Está neste caso a noção, tão importante para Ingarden, de puramente intencional, com as subdistinções que lhe estão ligadas (§§ 20-22, entre outros). Mas o contrário também pode acontecer, isto é, que uma ligeira alteração terminológica exprima exactamente a doutrina de Husserl. Pensamos na teoria da Wort-

X laut (a palavra no seu aspecto fón ico), em que o discípulo cuida fazer ohra um tanto original (§§ 9, 10, 12) e que é, quanto a nós, no essencial, a teoria husserliana do signo verbal (Wortzeichen), termo a que Ingarden recorre também, sobretudo no final da obra (§§ 62, 64, 66). E há a presença constante do professor de Gõttingen pràticamente em todas as páginas deste livro, mesmo quando não é nomeado. Basta indicar o peso enorme, desmedido, da intuição em sentido husserliano, que nos parece ser o eixo em torno do qual se organizam todos os elementos que contribuem para a valorização estética da obra literária. E há as críticas e divergências apontadas por Ingarden no Prefácio de 1930 e nalguns outros passos, nomeadamente no importante § 66. No âmbito destas divergências se inscreve o famoso e irri­ tante debate entre Realismo e Idealismo, que aterroriza os novos e faz sorrir os cépticos. Falar de filosofia, hoje? É verdade que se não fala muito de filosofia, que se julga possível neutralizá-la, pelo menos metê-la entre paréntesis, recorrendo a noções pura­ mente «operacionais»... È verdade também que Ingarden nem sempre é claro e que o debate entre Realismo e Idealismo passou de moda. Não nos parece, contudo, tão ultrapassado como isso ao insistir na necessidade de uma reflexão filosófica sobre o fenómeno literário 3. Acabámos de delinear, muito por alto e a partir de alguns exemplos mais relevantes, um estudo a fazer — as relações entre o pensamento de Husserl e o de Ingarden— , estudo que não cabe num prefácio, pois, a ser feito, teria de ser longo, minucioso, fundado em citações precisas das obras dos dois filósofos. Não queremos, contudo, deixar o leitor não especialista com­ pletamente desarmado. Mas não é fácil explicar em poucas pala­ vras o que é intencionalidade, constituição, redução eidética, redução transòendental e outras noções fundamentais; nem parece indispensável fazê-lo aqui. Existe uma bibliografia em português que os estudiosos de literatura e de lingüística só ganharão em conhecer4. 3 O problem a será retomado na conclusão deste Prefácio. 4 De A. F. Morujão, A Doutrina da Intencionalidade na Fenomenología de Husserl (Coimbra, separata da Biblos, X X X , 1955); Mundo e Intencio­ nalidade (Coimbra, Instituto de Estudos Filosóficos, 1961). De J. Fragata, A Fenomenología de Husserl como Fundamento da Filosofia (Braga, Livraria Cruz, estudos public. pela Fac. de Filos, de Braga, 1959); Problemas da Fenomenología de Husserl (Braga, Livraria Cruz, estudos public. pela Fac. de Filos, de Braga, 1962). De G. de Fraga, De Husserl a Heidegger. Ele­ mentos para uma Problemática da Fenomenología (Coimbra, Instituto de Estudos Filosóficos, 1966). Por último, um breve mas útil artigo de M. An­ tunes, «Crítica literária e fenomenología» (in Brotéria, L X X V I, 4, 424-35).

XI Posto isto, retomaremos alguns dos problemas atrás indi­ cados e outros que julgarmos necessários, começando por situá-los numa perspectiva histórica.

§ 1. Ingarden e Husserl Ingarden foi discípulo de Husserl em Gõttingen, a partir de 1909 aproximadamente, e segue-o para Freiburg, onde este ensinou desde 1916 até ao fim da sua carreira docente 5. Largos anos de convívio pessoal e uma comunicação de ideias que a separação não quebrou6 e se traduz por numerosos artigos sobre Husserl e por uma volumosa correspondência mantida quase até à morte do fundador da fenomenología, em 19387. Da profunda marca deixada pelo professor e amigo no jovem estudante polaco que, por volta dos dezoito anos, chega a Gõt­ tingen para conhecer o autor das Logische Untersuchungen, é a presente obra testemunho irrefutável. Influência profunda que se alia a não menor independência de espírito. Ê esta a sorte comum de todos os grandes iniciadores. Mas talvez só eles mereçam ter discípulos dissidentes... O debate entre Realismo e Idealismo (que, segundo Ingarden, é o horizonte último dentro do qual se investiga a essência da obra literária), as sérias reservas feitas ao idealismo trancendental e outras posições do filósofo polaco só se podem entender à luz da doutrina das Investigações Lógicas e da evolução de Husserl durante o chamado período de Gõttingen (1901-1916). Esta evolução surpreendeu a maioria dos seus adeptos da p ri­ meira fase; H. Spiegelberg, que conheceu muitos deles pessoal­ mente, fala mesmo de consternação, « consternação crescente» 8. No começo do século, em 1900 e 1901, Husserl publica os dois volumes de uma das obras que marcarão profundamente esse mesmo século, as Investigações Lógicas, cuja repercussão no mundo intelectual alemão foi enorme. E precisamente em 1901 deixa Halle e é nomeado professor em Gõttingen. Atraídos pela

5 H. Spiegelberg, The phenomenological movement. A historical introduction, vol. I (The Hague, M. Nijhoff, 1960, Fhaenamenologica 5), 169-70 e 225. 6 Supomos, por indicações do Prefácio de 1930, que Ingarden perma­ neceu um ou dois anos em Freiburg. O que perfaz cerca de oito anos de «aprendizagem» husserliana. 7 H. Spiegelberg, op. cit., 225. 8 Op. cit., 170.

XII leitura deste livro, pelo prestígio do seu autor, começam, por volta de 1905, a chegar à célebre cidade universitária os primeiros discípulos, estudantes ou jovens professores. Entre eles, Adolf Reinach, lohannes Daubert, M oritz Geiger, Theodor Conrad, Hedwig Conrad-Martius, Wilhelm Schapp, Alexander Koyré, Jean Héring, Roman Ingarden, Edith Stein e o u tros9. A guerra de 14 dispersa definitivamente estes primeiros ouvintes e críticos que, entretanto, formaram «círculos fenomenológicos» em Munique e em Gõttingen 10. Mas a «Primavera fenomenológica», como J. Hé­ ring chamou a esta época de intensa vitalidade e entusiasmo n, declina muito antes, se a entendermos como adesão sem reservas. Husserl nunca teve a equipa de investigadores que desejou, tra­ balhando sistemáticamente segundo o seu plano e o seu método 12. Não falando já das defecções célebres de Max Scheler e de Heidegger, esta numa fase posterior, o prim eiro choque que alertou o ainda reduzido grupo de fenomenólogos-aprendizes foi o curso de Verão de 1907, que ficou inédito até 1947 13. Aí aparece, segundo os comentadores actuais, o prim eiro esboço da redução transcen­ dental. P or outras palavras, aí começa Husserl a abrir caminho para a verdadeira fenomenología, que tem o seu acto oficial de nascimento em 1913 com a publicação do vol. I das Ideias para uma Fenomenología Pura e Filosofia Fenomenológica 14. Em 1929, R. Ingarden trabalhava no presente estudo quando aparece Lógica Formal e Transcendental, onde o idealismo husserliano é confirmado uma vez mais; a esta obra se refere no Prefácio de 1930, para sublinhar com júbilo os pontos de convergência entre o seu pensamento e o do antigo mestre, para recusar, com certa subtileza mas de maneira inequívoca, o idealismo trancendental. Este é, de facto, quanto a nós, a opção filosófica de base

9 H. Spiegelberg, op. cit., 169-70. 10 Sobre as relações dos dois Círculos cf. H. Spiegelberg, op. cit., 168-73. 11 J. Héring, «L a fénoménologie il y a trente ans. Souvenirs et réflexions d'un étudiant de 1909» (in Revue Internationale de Philosophie, Bruxelles, 1939), 369. 12 J. Héring, «Edm und Husserl. Souvenirs et réflexions» (in Edmund Husserl. 1859-1959, La Haye, M. Nijhoff, 1959, Phaenomenologica 4), 26-7. 11 Editado com o título Die Idee der Phánomenologie. Funf Vorlesting'en (E. Husserl, G. Werke, Haag, M. Nijhoff, 1947, Husserliana II). 14 «Ideen zu einer reinen Phánomenologie und phánomenologische Philosophie». Este 1." vol. das Ideias... foi publicado no n.° 1 do importante anuário de fenomenologia, então criado, o Jahrbuch fiXr Phánomenologie und phãnomenologischen Forschung. O editor da revista foi Husserl, natu­ ralmente, com a colaboração de A. Pfánder e M. Geiger (de Munique), A. Reinach (de Gõttingen) e M. Scheler (de Berlim).

XIII do método fenomenológico, da fenomenología tal como Husserl a concebeu. Mas esta recusa, que não é só de Ingarden, como vimos, vem de muito antes! Podemos imaginar sem custo o jovem estudante polaco chegando a Gõttingen, por volta de 1910, trazendo na bagagem as Investigações Lógicas (é ele quem o diz, algures) e verificando que o seu autor ultrapassara já a fase atingida p o r essa obra, fase pré-transcendental em que apenas se propusera estabelecer com rigor as bases de urna nova lógica e em .que (herança do positivismo, já decadente, mas com muita força aínda) tentara manter-se numa neutralidade filosófica em relação ao Idealismo como ao Realismo. Esta neutralidade, aliás, é discutível. Entre os especialistas de Husserl há quem veja, hoje, nas Investigações uma orientação idealista. Mas a primeira reacção foi diferente. E Husserl contri­ buiu muito para essa interpretação ao dizer «co m uma ironia séria»: «Os verdadeiros positivistas somos nós! » 15 A fenomenología das Investigações Lógicas ou a ilusão das terceiras vias! A Primavera de Gõttingen ou o desmoronar de mal-entendidos que, mais urna vez, Husserl foi o prim eiro a criar com a sua famosa palavra de ordem: Zu den Sachen selbst! Nada que não sejam as próprias coisas (die Sachen selbst), vistas em si mesmas e com um olhar novo. . . A intuição. . . A pura descrição das essências — e, para começar, das essências ou ideias lógicas. Hegel provisoriamente expulso da circulação na Alemanha, Freud ensaiando os primeiros passos, Níetzsche, o obscuro, a poucos acessível, Kierkegaard ainda não descoberto senão no seu país, onde ninguém é profeta: a cena filosófica está vazia. Can­ sados dum kantismo que sobrevivia em comentários de comen­ tários ou em secundárias ramificações de escola, dum positivismo redutor e pobre, duma psicologia adolescente, ingênua e aguer­ rida que se julgava o centro do universo, compreende-se que os primeiros leitores e ouvintes de Husserl vissem nele o que os franceses viram em Bergson: um renovador. Um renovador que afirma a necessidade de regressar ao concreto, à experiência imediata: a intuição das essências; que recusa opções metafísicas; que introduz uma certa ordem na lógica, anexada pela psicologia; que forja ou renova noções que se consideram chaves capazes de abrir todas as portas. Antes de mais, a noção de intencionalidade. Infelizmente para os primeiros entusiastas, em 1907 e em 1913 Husserl dá dois grandes passos na direcção do idealismo trans-

15 J. Héring, art. cit. (in Rev. Intern. de Philo.), 370.

XIV cendeníal. Regresso a Kant ou a algo de muito parecido com a filosofia de K ant? Infidelidade ao ideal daí fenomenología como ciência rigorosa 16? Repúdio de uma concepção supostamente realista do princípio de intencionalidade? Husserl é um eterno iniciador. Em cada obra se renova, em cada estudo recomeça a caminhada infatigável para fundar a filosofia. Um projecto inicial que se mantém, alargando-se sempre, em cada fase uma versão nova da fenomenología. Ê p or isso que encontramos hoje tantas fenomenologías diferentes: a de Sartre, a de Merleau-Ponty e, muito antes, a de Reinach, a de Pfãnder, a de Nicolai Hartmann, a de Max Scheler. A de Roman Ingarden. O mestre forneceu os materiais de base. Com eles, cada um dos ouvintes ou leitores muito cedo foi para o seu canto traba­ lhar, erguer a sua tenda. A de Ingarden é uma entre tantas outras. Destrinçar o que nela há de autenticamente husserlíano e de elaboração pessoal, repetimos, seria matéria para um estudo profundo e extenso. Aqui, temos de nos lim itar a abrir caminhos. Mas o que fo i dito permite ir um pouco mais longe. Nas suas linhas gerais, o problema põe-se mais ou menos nestes termos: enquanto Husserl se renova constantemente, Ingarden, de certa maneira, parou ao nível das Investigações Lógicas e de Ideias I, muito mais perto da primeira que da segunda obra. Não que Husserl fosse a única influência recebida. Igual­ mente importantes foram as de Pfãnder e de Bergson17. E o leitor pode verificar p or si a numerosa lista de outros autores citados neste volume. Também não pensamos que Ingarden tenha acei­ tado em bloco as Investigações, pois se afasta delas em pontos importantes. Sabemos, por outro lado, que é bom conhecedor de escritos posteriores de Husserl, publicados ou inéditos, alguns dos quais são aqui referidos. Queremos dizer que os problemas que mais fundamente o tocaram e suscitaram a sua reflexão vêm das Investigações Lógicas e de Ideias I. É dentro da problemática destas obras que se move, do seu conteúdo ou do impacto p o r elas produzido — dos aplausos, dúvidas, perplexidades, críticas, interpretações várias que suscitaram. Quer as aceite, quer as rejeite ou discuta, é dentro deste horizonte que se mantém. Um exemplo do prim eiro caso, o «fan­ tasma» do psicologismo; do segundo, o debate entre Realismo e Idealismo. 16 «Philosophie ais strenge Wissenschaft», publicado na revista Logos em 1910. 17 H. Spiegelberg, op. cit., 226.

longo

artigo

de

Husserl

XV Diremos uma palavra sobre cada um deles, começando pelo último.

§ 2. O debate entre Realismo e Idealismo O contributo mais original de Ingarden em fenomenología é talvez constituído pelas suas análises da obra de arte: literatura, para começar, mas também música, pintura, arquitectura. A sua obra fundamental, porém, diz respeito ao debate entre Realismo e Idealismo, problema de todos os tempos que retomou aguda actualidade com a adopção, por parte de Husserl, de um novo idealismo transcendental18. E Spiegelberg cita Der Streit um die Existenz der Welt como o estudo mais significativo do pensador polaco 19. J. Héring confirma este testemunho dizendo que todos os problemas suscitados pela nova atitude filosófica de Husserl, concretizada em Ideias I, são exaustivamente tratados no im por­ tante manuscrito de Ingarden e faz votos pela sua rápida publi­ cação em francês ou alemão20. Não conhecemos este livro, cujo título, A Controvérsia Acerca da Existência do Mundo, só por si remete para um problema central de Ideias I. Algo se pode deduzir das referências que encontramos em A Obra de Arte Literária (notas da segunda edi­ ção), mas apenas um problema nos interessa agora: o que diz respeito ao ser da obra literária. Basta consultar um Vocabulário de Filosofia para verificar como são múltiplas e por vezes discutíveis ou pouco claras as noções de Realismo e de Idealismo. Assim, por exemplo, importa não confundir o ponto de vista epistemológico com o ponto de vista ontológico, que são distintos, embora correlativos: uma teoria do ser está sempre ligada a uma teoria do conhecer. Não só é fácil misturar os dois planos como se tornaram correntes designações equívocas. A doutrina platónica das ideias, que aqui nos interessa de maneira especial, tanto pode ser considerada idealista (as ideias têm prioridade sobre os seres individuais e materiais, que apenas são o seu reflexo ou imagem) como realista (as ideias têm uma existência real e autónoma). J. N. Mohanty afirma a propósito de Husserl: « Ele é um dos raros, entre os filósofos anteriores à filosofia analítica, que recusa

18 H. Spiegelberg, op. cit., 226. 19 H. Spiegelberg, op. cit., 226. 20 J. Héring, art. cit. (in Edmund Husserl. 1859-1959), 28. A obra, em dois volumes, foi publicada em polaco em 1947-48 e em alemão em 1964-65.

XVI qualquer classificação em “ ismo” . De facto, o método que lhe é próprio permitiu-lhe combinar na sua filosofia elementos tão diversos como “ realismo” e “ idealismo” , “ racionalismo” ' e “ empi­ rismo”, “positivismo” e “pragmatismo” , “ intuicionismo” e “ intelectualismo” .» 21 Em nossa opinião, já o dissemos, a filosofia de Husserl é essencialmente uma forma de Idealismo. Mas julgamos possível, como Mohanty, encontrar nela todas estas tendências — tensões internas que talvez nunca se resolvam. O que ajuda a explicar a pluralidade de «fenomenologías» a que Husserl deu origem, assim como a multiplicidade de interpretações (por vezes opostas) do seu pensamento. Se isto se aplica à obra husserliana considerada no seu conjunto («o b ra » de que aliás se não pode falar enquanto houver inéditos não publicados...), aplica-se, de maneira especial, às Investigações Lógicas. Retomamos aqui o apontamento do parágrafo anterior, sobre as primeiras reacções a este livro, desenvolvendo um pouco o que atrás ficou dito. Houve quem nele visse um positivismo mais largo — que admitia, por exemplo, uma intuição intelectual — mas se abstinha de tomar posições metafísicas. Uma parte sig­ nificativa deste grupo interpretou a recusa do Idealismo e do Realismo como uma terceira via que liquidava definitivamente o dilema secular. Mas, ao contrário destes, muitos, e não só entre os discípulos da primeira hora, viram na fenomenología nascente uma abertura ao realismo epistem ológico22. Outros, porém, deram à famosa intuição das essências um sentido plato­ nizante ou «idealista»... Podíamos continuar a lista, mas paramos aqui pois chegámos ao ponto que nos interessa.

31 Edmund Husserl’s theory of meaning (The Hague, M. Nijhoff, 1964, Phaenomenologica 14), 2. 22 J. Héring formula bem o problema ao escrever: «II nous semblait que la phénoménologie était aussi compatible — et même m ieux— avec la thèse de 1’indépendance du monde ou avec celle de 1’interdépendance de la conscience et du monde», art. cit. (in Edmund Husserl. 1859-1959), 27. A independência da consciência e do mundo caracteriza o realismo epistemológico medieval. Quanto à segunda alternativa aqui enunciada, cremos que ela se aplica com alguma exactidão à ontologia fenomenológica de Sartre. É uma interpretação grosso modo realista do princípio de intencionalidade qüe Sartre apresenta aos leitores franceses num célebre pequeno artigo de 1939: «Une idée fondamentále de la phénoménologie de Husserl: l’intentionnalité» (in Situations I, Paris, Gallimard, 1947), 31-5. De uma maneira geral, é esta a tendência que permanece na escola feno­ menológica francesa.

XVII N o respeitante ao último problema enunciado, encontrámos provàvelmente a posição de Ingarden. Urna nota do § 18 dá-nos conta de perplexidades e oscilações por que passou em épocas anteriores às da redacção de A Obra de Arte Literária. O certo é que, ao escrevê-la, compara o Idealismo das Investigações Lógicas com o idealismo transcendental (idealismo alargado. . . ) da Lógica Formal e Transcendental. Mas só ao último faz sérias reservas. Mais urna vez enunciamos um problema que vamos reduzir às suas linhas elementares. Qual o ser da obra literária e (o u ) das objectidades que nela se manifestam? Os caps. 1 e 2 do presente livro (§§ 2-7) respondem à pergunta, numa reflexão cerrada e densa. Mas o problema fora posto logo no Prefácio e é retomado posterior­ mente, por exemplo nos §§ 18 e 66. N o essencial, a solução de Ingarden consiste em recusar a alternativa entre ser real e ser ideal para introduzir uma terceira modalidade de ser:, o puramente intencional, que caracteriza, entre outros, o ser da obra literária. Puramente intencional por­ que ontològicamente não autónomo mas dependente da cons­ ciência que o cria. De certa maneira, esta nova modalidade de ser é também uma terceira via — que não exclui mas se acrescenta às duas zonas de ser consagradas por uma longa tradição. A analogia com a terceira via husserliana ou pseudo-husserliana permanece, contudo, no desejo de quebrar a alternativa entre Realismo e Idealismo, para admitir, neste caso, uma terceira dimensão ontológica. Numa perspectiva puramente fenomenológica, seria a essên­ cia da obra literária a única a investigar e descrever. É nesta linha que devemos compreender a teoria dos estratos e outras ' análises dos últimos capítulos. Mas Ingarden afirma com fre­ quência que a mera descrição fenomenológica lhe não basta. P o r isso o objecto do seu estudò se insere num horizonte mais vasto, a análise fenomenológica é acompanhada — precedida — por uma reflexão ontológica na qual, precisamente, tomam lugar e sentido a discussão do ser da obra literária. Voltando às Investigações Lógicas, é curioso verificar que Ingarden as rectifica ou completa, mais do que as rejeita. Fala-nos das duas concepções opostas em lógica: a psicologista e a idea­ lista; esta última, afirma, tem o séu representante mais signifi­ cativo em E. Husserl e nos dois volumes de 1900-1901 (§ 18). E, se lermos algumas passagens atrás indicadas (Prefácio de 1930, §§ 18 e 66), parece-nos fácil concluir que Ingarden perfilha, de

XVIII maneira muito menos inequívoca que Husserl, o platonismo das essências, quanto a nós erradamente atribuído ao mestre. Apenas faz algumas distinções, importantes mas secundárias, quanto ao assunto que estamos tratando. Retira às significações husserlianas a idealidade, isto é, a intemporalidade e a invariabilidade, mas para a atribuir ao que chama essências, conceitos, objectidades ideais. Esta zona da idealidade pura é apresentada em termos que nos parecem perfeitamente platonizantes, talvez melhor, agostinianos. Poder-se-ia objectar que apela, neste caso, para a teoria da intersubjectividade, que cita mesmo as Meditações Cartesianas no § 66. É, sem dúvida, um contributo valioso para o problema de que se ocupa nesse parágrafo (e que retomaremos em breve). As suas observações têm actualidade e lêem-se com imenso inte­ resse. N o entanto, o apelo à intersubjectividade funciona também (sobretudo dentro da economia do livro) como um desvio que lhe permite regressar ao ponto de partida, por outras palavras, que lhe serve para distinguir significação e conceito, para fazer do conceito o fundamento ontológico das unidades de significação e, finalmente, para manter as três zonas de ser: ser real, ser ideal, ser da (criado pela) consciência. Sem poder concluir, pela leitura de A Obra de Arte Literária, quais as posições tomadas pelo filósofo polaco em todos os aspectos da controvérsia entre Realismo e Idealismo, parece-nos que a análise sumária que acabamos de fazer confirma o que atrás dissemos sobre a fase da fenomenología husserliana que sobre ele teve influência decisiva. A comparação com Heidegger pode ser elucidativa. Enquanto o autor de Sein und Zeit faz, em relação ao mestre comum, uma opção comparável à de Ingarden mas cria uma metafísica com bases totalmente novas, este fica preso à problemática da sua juventude em Gõttingen. Que a distinção entre intencional e puramente intencional (com as subdistinções que se seguem) não é husserliana, seria possível demonstrá-lo com facilidade. O próprio Ingarden o sugere, talvez, numa nota ao § 20. Aplicado à literatura, o pura­ mente intencional parece-nos corresponder à ficção de Husserl: literatura e artes em geral, embora Ingarden empregue as duas noções sem as distinguir claramente. A ficção está ligada à modificação de neutralidade, modifiy cação do «quase», do «com o se» (ais ob), passagem ao irreal ou puramente estético. Estas são as designações mais correntes em Husserl. Reconhecemo-las em muitas páginas deste livro, nomea­ damente nos §§ 25, 33-37, 63... Ingarden emprega ainda outras,

XIX de origem lógica. N o § 33 parece marcar urna certa distância entre a sua teoria e a modificação de neutralidade husserliana. Tanto quanto uma leitura atenta nos permite concluir, Ingarden desenvolve e aplica a dominios concretos e diferentes dos de Husserl a teoria condensada nos §§ 109-111 de Ideias I e de outros escritos. Mas, no essencial, não vemos a menor diferença entre os dois autores. Há mesmo descrições da Neutralitátsmodifikation extremamente felizes e perfeitamente conformes à doutrina do mestre 23. Só mais uma palavra a terminar este parágrafo. Que Ingar­ den, como tantos outros que o fundador da fenomenología, de perto ou de longe, tocou, tenha seguido o seu próprio caminho, é com ele e com os seus leitores. Mas, num país onde o pensa­ mento husserliano é tão mal conhecido, esta tradução pode cons­ tituir um perigo grave: o de atribuir a Ingarden ideias que são de Husserl ou de pôr em circulação como husserlianas ideias e teorias que, de facto, o não são. E isto em pontos tão funda­ mentais como é, por exemplo, a intencionalidade. Sem tratar a questão, parece-nos útil uma rectificação de princípio. Tratar o intencional (ou o puramente intencional, tanto faz, visto que esta distinção começa já por não ser husserliana) 1 como um modo de ser é falsear Husserl, é colocar o problema num plano ontológico em que este nunca o colo cou 24. A intencio­ nalidade husserliana é uma propriedade da consciência, proprie­ dade essencial que a define totalmente: a sua capacidade de referência ao ser, segundo modalidades ou intenções várias: perceptiva, imaginativa, estética, intenções afectivas que se diver­ sificam ao infinito, modos de intencionalidade puramente racio­ nais, como os que encontramos na lógica... Limitamo-nos a dar uma pálida ideia de um domínio por assim dizer ilimitado. Mas esta é apenas uma primeira aproximação: porque, antes da redução transcendental, portanto, ao nível das Investigações, a intencionalidade é um encontro; depois, é uma constituição2S.

23 Permitimo-nos remeter para o nosso estudo L'imagination selon Husserl (La Haye, M. Nijhoff, 1970, Phaenomenologica 34), especialmente para o cap. IV, «Imagination et neutralisation», 175-246. 24 Que o idealismo transcendental de Husserl seja uma opção meta­ física é inegável. Assim como a maneira de conceber a consciência no tão discutido e discutível § 49 de Ideias I. Mas isso é outro problema. 25 P. Ricoeur, introdução à trad. franc. de Ideias I (Paris, Gallimard, 1950), XX. Para um conhecimento mais actualizado da intencionalidade recomenda-se o último volume da Phaenomenologica: D. Souche-Dagues, Le développement de Vintentionnálité dans la phénomenologie husserlienne (La Haye, M. Nijhoff, 1972, Phaenomenologica 52).

XX

§ 3. Psicologismo, antipsicologismo, fenomenología A crise das ciências é um fenómeno bem conhecido que domina as últimas décadas do século passado e entra pelo século X X . Husserl é um dos que, ao lado de tantos outros, enfrentam esta crise e tentam resòlvê-la. P or isso passa da mate­ mática à lógica, da lógica à fenomenología, numa motivação que permanece através de metamorfoses várias: a de introduzir ordem, clareza e rigor num edifício onde reina o caos. Na sua tentativa para fundar a lógica em bases sólidas encontra o psicologismo, ou seja, o imperialismo da psicologia, que, juntamente com a história, tenta reduzir todas as outras ciências a meras províncias do seu império. Os leitores de for­ mação lingüística ou literária estão familiarizados com a abusiva pretensão da história, com o historicismo reinante na «filo lo g ia » e na crítica literária, sobretudo pelas reacções famosas e fecun­ das que provocou. Conhece menos o psicologismo, mas o modelo historicista apresenta características idênticas. Talvez se possa dizer que eram dois monopólios em concorrência, ou aliando-se por vezes, para tornar mais confusas as coisas. O psicologismo lógico era, pois, uma realidade. Mas a ética, a estética, e assim por diante, não escapavam ao seu projecto de dominação ou dominação efectiva. «O mundo é a minha representação», tal a fórmula corrente no final do século que condensa bem o psicologismo epistemológico. Esta tendência remonta a Hume e é dela. qtie fala Sartre no artigo citado páginas atrás (nota 22), que muitos leitores portugueses conhecem. «Que é uma mesa, um rochedo, uma casa? Uma certa reunião de “ con­ teúdos de consciência” , um arranjo destes conteúdos. Õ filosofia alimentar!» 26 «Contra a filosofia digestiva do empírio-criticismo, do neokantismo, contra todo o “ psicologismo” , Husserl não se cansa de afirmar que é impossível dissolver as coisas na cons­ ciência. » 27 Antecipando sobre o assunto do § 5, não convirá lembrar que a famosa « imagem acústica» de Saussure é um exemplo admirável da «filosofia alimentar» de que fala Sartre? Uma espécie de duplo (imagem), de cópia, de representação psíquica no interior da consciência concebida como armazém... Assim, Saussure escapou à tutela da história mas não escapou por com­ pleto à psicologia dominante do seu tempo. Felizmente que há

26 Art. cit., 31. 27 Ari. cit., 32.

XXI outras coisas, e bem melhores, no Cours de linguistique générale. A «imagem acústica» é, porém, umâ noção psicologista típica. Quando Husserl escreve as Investigações Lógicas, o psicolo­ gismo, sob todas as suas formas, e especialmente o psicologismo lógico, é de facto um gigante que se torna indispensável derrubar, e vencer. A finalidade do vol. I, Prolegómenos à Lógica Pura, é precisamente esta: desembaraçar o terreno do mal-entendido que tudo adulterou ao reduzir os conceitos lógicos a meros produtos de operações psíquicas, a conteúdos de consciência. Confundir facto e essência, afirma ainda Husserl em Ideias I, é misturar os planos. As essências — e, para começar, as essências lógicas — devem ser compreendidas na sua pura idealidade, isto é, naquilo que são, tal como uma intuição pura as apreende, libertas da interpretação psicologista que as reduz a conteúdos psíquico Por isso as designa, nas Investigações, p or species ideales. Em nosso entender, não há aqui nenhum realismo das essên­ cias ou «idealism o» de tipo platonizante. Husserl foi mal servido pela sua formação matemática e lógica. E, sobretudo, o desejo de restaurar a especificidade do conceito lógico, de o subtrair à zona de influência psicologista, levou-o sem dúvida a expressões ambíguas. Seja como for, Ingarden aceita o Idealismo das Investigações Lógicas, quando aplicado à zona das idealidades puras. Assim como continua, trinta anos depois dos Prolegómenos, a esgrimir contra o psicologismo. Ê certo que esta tendência era profunda e, por mais decisiva que tenha sido a influência de Husserl junto de estudiosos das mais variadas especialidades que se conver­ teram à fenomenología (dando origem a correntes de lógica feno­ menológica, de estética fenomenológica, etc., etc.), o psicologismo não morreu de vez. Posto sèriamente em causa, vai sobrevivendo. O que era um gigante, no início do século, não se transforma em simples moinho de vento, três décadas depois. N o entanto, i sua persistência, menos generalizada, mais enfraquecida, não parece justificar totalmente a luta encarniçada que atravessa o presente volume. Com efeito, Ingarden não cessa de combater d psicologismo, da primeira à última página de A Obra de Arte Literária. Porquê? Há razões objectivas para tal. Mas o nó da questão situa-se numa zona mais profunda, num debate interior que Ingarden trava consigo mesmo e que não acaba por resolver, velo menos neste, livro. Ele reside, quanto a nós, no facto de não ter acompanhado Husserl na sua posterior evolução. Só a teoria da redução transcendental (que põe a nu a zona ia consciência pura, onde esta se descobre a si mesma como

XXII poder constitutivo de todos os sentidos em que apreende o mundo e de todas as modalidades intencionais desta apreensão) permite a Husserl ultrapassar, de maneira definitiva, o nível psicológico. Se é certo que as Investigações Lógicas destruíram o pres­ suposto psicologista, também é verdade que a fenomenología não logra ainda desprender-se por completo da descrição psico­ lógica. Ora foi mais ou menos aí, dissemos, que Ingarden parou. Do antipsicologismo das Investigações e de Ideias I reteve certos elementos básicos e, em prim eiro lugar, a distinção entre objecto (cõnteúdo) intencional (de um acto ou de uma frase) e conteúdo real (entenda-se aqui real no sentido de psíquico, quase a resvalar para o fisiológico). Por outras palavras, o intencional é uma transcendência na imanência, algo que se manifesta ou aparece na consciência pura mas se distingue do seu fluxo imánente real. Tudo isto adquire sentido na fenomenología husserliana da maturidade, assente nos dois pilares que são redução transcen­ dental e constituição. Mas Ingarden permanece na ambigüidade da primeira fenomenología (chamemos-lhe assim...), não se liber­ tando, pòr isso mesmo, da ameaça do psicologismo. São várias as perplexidades, explícitas ou implícitas, que o fazem oscilar perpetuamente entre uma descrição fenomenológica e uma des­ crição psicológica. È a ultima, contudo, que predomina em A Obra de Arte Literária. N o único parágrafo introduzido em 1960, segundo cremos, , o § 25a, chega a acusar Husserl e Pfãnder de se não terem libertado por completo do psicologismo. P o r isso, a própria fenomenología, tal como a entende, é uma atitude que só assume a medo e quando não pode deixar de ser. A este propósito queríamos chamar a atenção para dois problemas, sendo o primeiro, como é natural, o da análise feno­ menológica que esperaríamos encontrar neste estudo. O segundo diz respeito à problemática da «obra aberta», para empregar uma expressão familiar aos nossos leitores. N. Hartmann, M. Geiger, H. Conrad e outros aplicaram o método fenomenológico à estética em geral ou à exploração de domínios específicos da criação artística. Ingarden tem lugar neste sector, segundo H. Spiegelberg e R. Bayer28. Mas... il faut y regarder de plus près, como diria Sartre. No Prefácio à terceira edição deste livro, o professor de Cracovia explica como, pouco a pouco e em diversos escritos, se 28 Cf. H. Spiegelberg, op. cit., 226; R, Bayer, Histoire de Vesthétique (Paris, A. Colin, 1961), 381.

X X III foram delineando os contornos de uma estética fenomenológica, como ele próprio a entende. Só a totalidade destes estudos dará, pois, uma ideia exacta da sua doutrina. A Obra de Arte Literária é apenas uma fase num longo caminho. Impossível caracterizá-la fora de uma visão de conjunto. O que se pode verificar é que a análise fenomenológica só de longe em longe aqui aparece. No início do § 6 faz-se uma série de distinções importantes: ontologia da obra literária; psicologia da produção artística no domínio da literatura; análise dos actos de consciência que estão na origem da estruturação da obra literária; obra considerada em si mesma e distinta, tanto de um como de outro ponto de vista (o psicológico e o fenomenológico, segundo cremos). Estas distinções parecem-nos certas. Apenas lamentamos que o exces­ sivo receio do psicologismo tivesse impedido Ingarden de ir até ao fim das exigências do método fenomenológico. R. Odebrecht faz-lhe esta mesma crítica; Ingarden responde numa nota ao § 2 da segunda edição. Mas, por mais valiosa e penetrante que seja a teoria dos estratos, estes «pairam no ar», efectivamente. Assim como a análise horizontal da obra literária, a sua ordenação temporal e espacial (§§ 54-55). Aí deparamos com observações de real interesse que apontam para os estudos das estruturas narrativas de um Brémond, de um Barthes, de um Greimas (de Barthes, sobretudo, no famoso artigo de Communications 8) e para os que se relacionam com o tempo na obra literária, tais como os de J. Pouillon e G. Poulet. Mas de análise fenomenoló­ gica apenas alguns apontamentos esporádicos. Há a salientar os §§ 62 e 66, onde se condensa o que é possível colher fragmenta­ riamente, aqui e além, sobre uma fenomenología da obra literária, quer do ponto de vista do leitor, quer do ponto de vista do autor. Falámos, no início deste Prefácio, da necessidade de certas recuperações fundamentais. Entre elas a do «a u tor». A par de tentativas várias, mais felizes umas que outras, feitas sob o signo da psicanálise, e que, mesmo que o não queiram ou professem o contrário, visam, por uma necessidade interna, a esta recuperação — não poderíamos pensar na fenomenología como outra via diferente a tentar, com vista à mesma finalidade? Passamos agora ao que chamámos a problemática da «obra aberta». Nos caps. 13 e 14 (§§ 61-67), a propósito do terceiro estrato da obra literária, R. Ingarden põe o problema do estado de disponibilidade da obra, de certas zonas de indeterminação que

XXIV nela encontramos, ou seja, em resumo, a possibilidade que esta oferece de leituras diferentes, quer pessoais, quer epocais. Impos­ sível ler estas páginas sem pensar na teoria de Umberto E c o 29. Certas afirmações do cap. 13 poderiam ser atribuídas a Eco ou mesmo a Roland Barthes. A distinção que faz entre a obra em si, idêntica a si mesma, e as suas concretizações, múltiplas e variáveis, continua em discussão. Uma interpretação husserliana levar-nos-ia a conside­ rar que um objecto X só se torna obra escrita pela leitura que dela fazemos, eventualmente obra literária, esteticamente positiva ou negativa, pelos juízos de valor que lhe atribuím os30. Ingarden aproxima-se desta solução no § 65. Afirma, mais de uma vez, que a obra apenas se manifesta ao leitor na sua concretização, isto é, no acto da leitura, o que está muito perto da teoria husser­ liana. Admite até que o papel activo do leitor e do crítico possam destruir a própria obra para produzir, em seu lugar, uma obra nova. Tudo isto no cap. 13 (§§ 61-64). Mas, no início do cap. 14, § 65, eis que o perigo do psicologismo, com o seu corolário — o subjectivismo — , lhe surge como ameaça à objectividade, à identidade da obra. Procura então recuperar o terreno perdido (quanto a nós, ganho) recorrendo à idealidade do conceito. lá foi dito que Ingarden distingue significação e conceito e que só ao último atribui o estatuto ontológico da. idealidade pura. Só o conceito ê imutável, invariável, intemporal, enquanto as sig­ nificações podem variar 3¡._ Mas o conceito é o fundamento da significação! Pela participação ao mesmo conceito, d.ois interlo­ cutores podem compreender-se empregando palavras que, em prin­ cípio, admitem significações diferentes. De maneira análoga, dois ou mais leitores podem ler o mesmo livro, cujo estrato significa­ tivo é susceptível de originar leituras várias, melhor: seria, mas não é. As significações remetem para os conceitos e estes são garantia de estabilidade. Assim se esconjura o risco da confusão, da pulverização subjectivista do objecto literário. Esta a solução de Ingarden para restaurar e fazer valer os direitos da identidade da obra (§ 66).

29 L'oeuvre ouverte, trad. do italiano (Paris, Seuil, 1965). 50 Sobre a obra de arte em Husserl remetemos o leitor para o nosso estudo «O primado da percepção e a concepção da obra de arte em H usserl» (in Perspectivas da fenomenología de Husserl, Coimbra, Centro de Estudos Fenomenológicos, 1965), 73-106. 31 Retomaremos o problema no § 5: A teoria husserliana do signo lingüístico.

XXV Convém parar um pouco e olhar para trás. Nos §§ 7 e 8 voltaremos ao 3.° estrato e então se verá melhor quais as possi­ bilidades reais que Ingarden concede à indeterminação da obra literária. Para já, não esquecer que a questão surgiu com esta motivação, circunscrita, pois, por limites relativamente modestos. Aconteceu, porém, que a problemática se desprendeu do ponto de partida, foi alargada, formulada na sua dimensão má­ xima: a obra literária surgiu-nos como promessa de um espaço totalmente disponível o. uma pluralidade ilimitada de leituras. Mas a abertura concebida nestes termos foi logo neutralizada. Como vimos. Que pensar da solução proposta por Ingarden? Ela apare­ ce-nos como uma tentativa arriscada, um percurso sinuoso que não acaba por nos convencer nem parece convencer por completo o próprio autor. O § 67, que fecha o capítulo 14, exprime mais dúvidas do que certezas. Reconheçamos, porém, que Ingarden teve o mérito de não fugir a um assunto difícil e escolheu um caminho que, sem ser indiscutível, merece reflexão. A semântica moderna encontrou as mesmas dificuldades. Neste e noutros sectores de investigação da lingüística e da lite­ ratura diversas teorias foram propostas. Novos conceitos surgiram. A questão mantém-se no horizonte. Ao problema da leitura se liga de perto o da leitura crítica, da análise literária. São conhecidas as divergências que dividem este sector e que é possível reduzir a duas tendências fundamenlais: uma, um neopositivismo que busca critérios científicos de análise; e outra ou outras formas de abordagem do fenómeno literário que se arriscam a cair num neo-impr essionismo. Sem resolver o problema, é muito possível que o filósofo polaco nos marque o rumo certo ao afirmar que se torna indis­ pensável determinar os limites de variabilidade de uma obra literária (§ 64). Por outras palavras, e indo ao fundo da questão: há limites, fronteiras a estabelecer. Talvez com mais rigor, parece-nos indispensável, hoje, que ao abordar uma obra literária o façamos num projecto fundamental de ultrapassar o impressionismo fácil do passado. Para isso há apetrechamentos cientí­ ficos de inspiração vária que não é permitido desconhecer e entre os quais é possível escolher. Posto isto, e para além desta exigência fundamental, há ainda lugar para a subjectividade do leitor-crítico que se assume como sujeito. Gostaríamos de acres­ centar: que não pode deixar de. o fazer! Não se julgue que esta precisão é um pormenor sem im por­ tância. Ê muito mais do que isso. Na verdade, cada leitor-crí­ tico não pode ler uma obra a não ser a partir da situação que

XXVI ele mesmo è — situação sempre ligada a uma possibilidade de opção — , situação e opção reveladas já, e antes de mais, no método que escolhe ou consente para se introduzir no universo a explorar.

§ 4. A teoria dos estratos Impossível passar em silêncio, neste Prefácio, a famosa teo­ ria dos estratos, que constitui o travejamento fundamental de A Obra de Arte Literária. Ainda aqui encontramos a influência de Husserl32. Aliás, Pfãnder, Ingarden, Hartmann 33, outros talvez, foram todos beber à mesma fonte. O livro Teoria da Literatura, de R. Wellek e A. Warren, foi, sem dúvida, o principal instrumento que divulgou junto do pú­ blico português o nome do filósofo polaco e quase exclusivamente a teoria dos estratos! Primeiro, a tradução espanhola, de 1953, que teve larga difusão nos nossos meios universitários. Anos depois, a tradução portuguesa. O original inglês é de 1942 e a ele se refere Ingarden no Prefácio à terceira edição do presente livro para rectificar interpretações que considera erradas ou superfi­ ciais do seu pensamento. A breve referência de Wellek-Warren não parece, de facto, uma boa introdução, mas a «análise enge­ nhosa e altamente técnica» 34 do antigo estudante de Gõttingen não torna muito acessível o seu trabalho. Com efeito, a enumeração dos quatro estratos, que se encon­ tra no § 8, e à descrição dos quais é consagrada a quase totali­ dade do volume, suscita numerosas interrogações. Num quadro de pensamento e terminologia tradicionais ( as unidades lingüísticas são ainda, neste livro, a palavra e a frase; as modernas noções de fonema, monema, morfema, sintagma, são-lhe desconhecidas) , Ingarden fala-nos, contudo, de problemas a que Saussure, Bühler, Jakobson, Eco, Greimas, Barthes... nos

32 H. Spiegelberg, op. cit., 226: «In these studies Ingarden made impressive use of the strata theory of pure logic as developed particularly by Pfãnder on the basis of Husserl’s first suggestions.» Spiegelberg refere-se não só a Das literarische Kunstwerk, mas aos estudo de estética em ge^ral de Ingarden. 33 R. Bayer, op. cit., 347, considera N. Hartmann como um dos repre­ sentantes da tendência fenomenológica em estética e refere-se à sua ma­ neira de conceber a complexidade do objecto estético explicando a sua estrutura por estratos. 34 R. Wellek, A. Warren, op. cit. (Lisboa, Publicações Europa-América, 1962), 188.

XXVII habituaram. A alguns se fez referência. Podemos acrescentar o problema do significado, o das funções da linguagem e outros. A palavra função aparece-nos, por assim dizer, a cada página deste livro com sentidos diversos. Mas, com frequência, estratos e funções (no sentido, hoje corrente, de funções da linguagem) estão relacionados ou confundidos. Esta relação não é clara mas é profunda no espirito de Ingarden e vem de 1930. Numerosas passagens de A Obra de Arte Literária se ocupam da função expressiva ('Funktion des Ausdrückens ou Ausdrucksfunktdon por vezes, geralmente Funktion der Kundgabe ou Kundgabefunktionj. Encontramo-la nos §§ 9, 10, 12, 19, 26... O § 19 tem especial interesse, pois refere um artigo de K. Bühler, de 1920, que contém um esboço do esquema que a Sprachtheorie difundiu em 1934: as três funções da linguagem. Mas a influência de Bühler não é única; outros autores são citados, no texto ou em notas, Husserl nomeadamente, no § 13. Esta última influência revela-se ainda na preocupação de Ingarden em distinguir a fun­ ção expressiva de outra — que passaremos a designar por função apresentativai5— , ou seja, a Darstellungsfunktion de Bühler, função denotativa ou referencial de Jakobson. Tudo isto se tornará mais claro nos parágrafos seguintes ao considerarmos alguns problemas que a teoria dos estratos sus­ citou. A fim de abrir caminho aos dois problemas que atrás mencio­ námos: o significado, as funções da linguagem, é útil chamar a atenção para duas notas acrescentadas à segunda edição, uma ao § 9, outra ao estudo de 1958, As funções da Linguagem no Es­ pectáculo Teatral, (§ 3 ), publicado em Apéndice. Estas duas notas foram motivadas pelo sucesso da Sprach­ theorie, que apareceu pouco depois da obra de Ingarden; nelas se encontram associados os nomes de Bühler, Husserl e Twar­ dowski. A intenção de Ingarden parece clara: Bühler não é tão original como se pensa porque, antes dele, Husserl tinha isolado, nas Investigações Lógicas, a função expressiva, que aliás se encon­ tra já em Twardowski numa obra de 1894lb. A segunda nota é mais extensa e pretende ser mais explícita que a primeira. Ci35 Ingarden emprega também, em geral, Darstellung, possivelmente por influência de Bühler. A tradução mais correcta seria representação. Mas a polissemia deste termo só gera confusões. Acresce que Reprasentation (representação em sentido forte) convém com mais propriedade ao 3.° estrato. Acabámos por nos decidir por apresentação — designação que também não é isenta de ambigüidade (of. nota 79). 36 Husserl cita Twardowski nas Investigações Lógicas, II, 1, 50. N o que segue ocupar-nos-emos exclusivamente de Husserl.

XXVIII tando sempre as Investigações, acrescenta-se: Husserl ocupou-se aí minuciosamente, demoradamente (ausfürlich), de Ausdruck e Kundgabe (podemos traduzir, respectivamente, por «expressão» no sentido de expressão verbal e «expressão» ou «manifestação» no sentido de função expressiva). Husserl modificou esta termi­ nologia, numa época posterior, para Bedeutung e Ausdruck ( « significação» e «expressão»). Há aqui algumas confusões. Mais uma vez, e generalizando, o que é e o que não é de Husserl? Sem descer a um estudo exaustivo, repetimos, tocare­ mos no assunto, e Husserl estará presente nos quatro pontos seguintes, todos eles suscitados pela teoria ingardiana dos estra­ tos, a saber: a teoria husserliana do signo lingüístico; percepção e significação; estratos e funções da linguagem; para uma estética da intuição.

§ 5. A teoria husserliana do signo lingüístico Na última nota citada no parágrafo anterior Ingarden mis­ tura dois problemas: o da função expressiva e o da expressão verbal. Vamos separá-los, deixando para o § 7 decidir se encon­ tramos ou não em Husserl a dita função. Do que não há sombra de dúvida é que Husserl formula em 1901 uma teoria do signo lingüístico que tem semelhanças notáveis e diferenças não menos importantes com a de Saussure. Sem fazer uma análise exaustiva da questão, não queremos deixar de assinalar o facto, demasiado esquecido. Apenas alguns apontamentos, no desejo de que alguém os retome para estudo mais profundo e com pleto37. Três pontos fundamentais parecem aproximar Saussure e Husserl: a descoberta de uma ciência dos sinais em geral; o princípio de imanência a presidir às relações entre significante e significado; o anti-historicismo dos dois pensadores, com a consequente preferência pela descrição sincrónica e sistemática das coisas mesmas. Trata-se de afinidades, não de coincidências absolutas. Assim é que os três pontos acima indicados só podem ser tomados como tendências que vão no mesmo sentido. Muitas restrições, reservas e precisões há a fazer agora.

37 Supomos conhecido dos leitores, o Cours de linguistique générale, o que nos dispensará de citações constantes. Citá-lo-emos apenas quando houver problemas de interpretação ou quando isso nos interessar por razões especiais.

XXIX Em prim eiro lugar, Husserl nunca fala de semiología. Refe­ re-se, contudo, e logo no início das Investigações Lógicas ( l . a In­ vestigação, cap. 1, § 1), a um vasto domínio de sinais ou signos. O sinal (Anzeichen) não é o mesmo que signo (Zeichen) e signo é também diferente de expressão (Ausdruck). Na prática podem tomar-se os signos no sentido de sinais, indícios, marcas distin­ tivas... Exemplos: o estigma, signo do escravo; a bandeira, signo da pátria; os monumentos; o nó no len ço... «E m sentido rigo­ roso, uma coisa não pode ser chamada signo (Anzeichen) a não ser nos casos em que serve efectivamente a um ser pensante de indicação para outra coisa qualquer.» 38 Neste vastíssimo campo Husserl faz várias distinções, em que não nos detemos para ir à que mais interessa: signos indicativos, de um lado; signos significantes ou expressões, do o u tro 39. Estes últimos têm um lugar à parte no conjunto: « Todo o signo é signo de qualquer coisa, mas nem todo o signo tem uma “ significação” , um “ sen­ tido” que seja expresso com o signo. » 40 Não encontramos a designação que Saussure tornou célebre; também não aparece a ideia de conjuntos ou sistemas de sinais. Com estas reservas, Husserl não andou muito longe da intuição do mestre de Genebra. Quanto à confusão entre signo e sinal, inaceitável para um saussuriano, ela não é grave para Husserl. O signo de Saussure, que é a totalidade (do significante e do significado), corresponde à expressão (Ausdruck) de Husserl41. Sobre imanência muito haveria a dizer, mas limitamo-nos ao essencial. Saussure operou uma revolução na lingüística ao banir a ideia da língua como nomenclatura. Em vez de termos e coisas, o signo saussuriano nunca desemboca no mundo extralinguístico pois liga significante e significado. Há algo de muito semelhante no projecto fundamental (mais inconsciente do que consciente ou só progressivamente consciente...), na ideia-directriz da feno­ menología husserliana. Entendida como idealismo transcendental, que é ela senão a descoberta da consciência constituinte e das significações que constitui? «Zu den Sachen selbst!», proclamava o professor de Gõttingen, mas o que o preocupava nessa mesma

38 Log. Unt., II, 1, 24-5. 39 Op. cit., II, 1, 30. 40 Op. cit., II, 1, 23. 41 À expressão, no seu aspecto físico, chama signo sensível, complexo fónico articulado ou escrito num papel (Log. Unt., II, 1, 31). O signo lin­ güístico husserliano é o significante saussuriano (menos a imagem acústica) reduzido, por abstracção, à pura materialidade.

XXX época não eram as coisas mas os seus sentidos: a consciência e os modos como as coisas se lhe manifestam. A I Investigação Lógica tem por título Expressão e Signifi­ cação (Ausdruck und Bedeutung). A expressão remete para urna significação — o significado de Saussure. A análise da significação dá lugar ou relaciona-se com muitas outras distinções. Entre elas, a de objecto intencional e matéria intencional. Matéria intencio­ nal ou unidade ideal de significação42. A significação determina a referência intencional de um acto, na linha objectiva. Se toma­ mos, por exemplo, um acto de pensamento, um triángulo pode ser pensado sob dois aspectos diferentes: triángulo equilátero, triángulo equiángulo; Napoleão pode ser pensado como o ven­ cedor de lena ou o vencido de Waterloo 43. Em ambos os casos temos o mesmo objecto, apreendido sob significações ou sentidos diferentes. O sentido nunca coincide com o objecto: é o objecto tal como nos aparece. E pode aparecer-nos de variadíssimas ma­ neiras! P or outras palavras, há que distinguir o objecto sobre o qual se pensa algo e aquilo que dele se pensd44. Neste segundo termo temos o significado, constituído pela consciência. Estamos, pois, já, no domínio da imanência. Em princípio, o objecto-intencional também não é uma trans­ cendência. Mas, ao nível das Investigações Lógicas, o intencional é insuficientemente elaborado. Napoleão parece ser o referente, introduzido posteriormente a Saussure. Nas Ideias I a redução transcendental põe o mundo entre paréntesis, total e definitiva­ mente. Claro que no interior dos paréntesis vamos encontrar o mundo! Mas tudo quanto a análise noético-noemática permite descobrir é a consciência pura e o mundo nela constituído. Falámos de três pontos de afinidade entre Husserl e Saus­ sure. Sobre o terceiro limitamo-nos a uma citação de B. Málmberg: nas Investigações Lógicas Husserl «reclama uma “gramática pura” e proclama a existência de leis estruturais, mesmo na língua» 45. Esta afirmação pode induzir em erro. Não há dúvida de que Husserl anteviu a possibilidade e a necessidade do que chamamos hoje análise estrutural. O seu anti-historicismo, a sua formação lógica predispunham-no para tal. N o que respeita à doutrina do

42 A Bedeutung husserliana pode ser considerada em dois sentidos: como acto doador de significação e como unidade ideal de significação. É a última acepção que está agora em causa. 43 Log. Unt., II, 1, 46. 44 Op. cit., II, 1, 46. 45 Les nouvelles tendances de la linguistique (Paris, P. U. F., 1968), 308

XXXI significado ficou, contudo, muito aquém de Saussure. A distinção saussuriana entre significado e valor, a descoberta de que o valor de uma palavra depende da constelação em que está inserida, dos seus «arredores», são mais fecundas para a fundamentação da semântica estrutural do que a análise estática de Husserl. Ê certo que este admite as «significações ocasionais», como Ingar­ den refere no § 18 de A Obra de Arte Literária. Mas é uma aber­ tura tímida em relação à visão de Saussure. Temos aqui o prim eiro elemento que opõe os dois pensado­ res. Sem ser total ( e merecer, em nossa opinião, um estudo mais profundo), não pode deixar de ser assinalado. O segundo oferece a mesma característica. Ê conhecido o lugar privilegiado que Saussure atribui à língua falada e consi­ derada como factor de comunicação. À primeira vista, não existe nenhum privilégio deste género em Husserl, pelo menos nas Investigações Lógicas. Quando fala da expressão considera-a, indi­ ferentemente, como signo verbal ouvido ou escrito. Refere-se, no entanto, à função de comunicação da linguagem dizendo que esta é a sua função originária46. Seria necessário completar estes dados com a teoria da intersubjectividade, característica da sua última fase. Chegamos ao terceiro elemento que opõe Husserl e Saussure. Em rigor, só deveria ser estudado numa visão global que com­ parasse as duas concepções de signo lingüístico. Mas estamos perante uma divergência tão profunda e radical ( ao contrário das duas precedentes) que não podemos deixar de lhe dar um lugar à parte. Trata-se da imagem acústica, já atrás mencionada (pp. xx-xxi). Para compreender a origem e natureza deste conceito con­ viria lembrar a crítica que Sartre faz, em L ’imagination, à ma­ neira como a chamada «imagem mental» foi concebida durante os últimos séculos, de Hume a Taine ou Spencer, digamos com certo optimismo. A «imagem mental» não passava de cópia en­ fraquecida da percepção, uma espécie de duplo — de natureza vária, consoante a interpretação dos teorizadores— que se vai « armazenando» na consciência, no cérebro, se preferirem. Un petit tableau à 1'intérieur de la conscience... à semelhança dos quadros que penduramos nas paredes das nossas casas. Nos dois livros que consagra ao assunto, L'imagination e L'imaginaire, Sartre afirma que a fenomenología husserliana for­ nece um princípio capaz de acabar definitivamente com o pos-

46 Log. Unt,, II, 1, 32.

XXXII tillado de imanência ( « filosofia alim entar»...) que se encontra já na escolástica e na filosofia grega. O nosso estudo L'imagination selon Husserl confirma o juízo de S artre47. Neste ponto, o método fenomenológico vai muito mais longe di que a psicologia dentista das «marcas depostas em cada cérebro» 48 que alimenta a cultura de Saussure. Não falta sequer, no Cours de linguistique générale, o para­ lelo entre as duas espécies de imagem, a imagem acústica c a imagem visual, ou seja, a palavra escrita: « A língua_ é a deposi­ tária das imagens acústicas e a escrita a forma tangível dessas imagens.» 49 A expressão de Saussure nem sempre é clara, mas o seu pensamento parece sé-lo: o complexo fónico sensorial dá origem a duas imagens — a imagem visual escrita, representação do signo verbal, também comparável a uma fotogra fia 50. Mas será legítimo opor fotografia e rosto? Não o eremos, visto que «o rosto», em principio, nunca é considerado em H mesmo, mas sempre tam­ bém numa outra cópia ou representação: a imagem acústica. Que é, afinal, uma‘ imagem acústica? Dissemos que o pensa­ mento de Saussure parece claro. Mas talvez não o seja. Quem

47 Sobre o postulado da imanência cf. pp. 38, 42-57, 62-3, 94-6, 100, 116, 140, 163-8, 248, 253. 48 Cours de linguistique générale, trad. port. (Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1971), 49. 49 Op. cit., trad. port., 43. «E n outre, les signes de la langue sont pour ainsi dire tangibles; Vécriture peut les fixer dans des images conventionnelles, tandis qu'il serait impossible de photographier dans tous leurs détails les actes de la parole; la phonation d ’um mot, si petit soit-il, repré­ sente une infinité de mouverraents musoulaiires extrémement difficiles à connaitre et à figurer. Dans la langue, au contraire, il n’y a plus que l’image acoustique, et celle-ci peut se traduire en une image visuelle constante. Car si l ’on fait abstraction de cette multitude de mouvements nécessaires pour la réaliser dans la parole, chaqué image acoustique n'est, comme nous le verrons, que la somme d'un nombre limité d’éléments ou phonémes, susceptibles à leur tour d'étre évoqués par un nombre correspondant de signes dans l’écriture. C'est cette possibilité de fixer les choses relatives à la langue qui fait qu’un dictionnaire et uñe grammaire peuvent an étre une représentation fidéle, la langue étant le dépót des images acoustiques, et l’écriture la forme tangible de ces images» (Cours..., Paris, Payot, 1955), 32. Sublinhados nossos. 50 Op. cit., trad. port., 57. «M ais ie mot écrit se mêle si mtimement au mot parlé dont il est l’image, qu’il finit par usurper le role principal; on en vient à donner autant et plus d'importance à la représentation du signe vocal qu'á ce signe lui-méme. C'est comme si l'on croyait que, pour connaitre quelqu’un, il vaut mieux regarder »a photognaphie que son visage» (C o u rs ...), 45, Sublinhas nossos.

XXXIII sabe o que é uma imagem acústica?... A dificuldade em responder a esta pergunta explica, por certo, que a designação alternei, com a de «impressões acústicas» 51. Na célebre definição de signo lin­ güístico da I parte, cap. 1, § 1 do Cours... as confusões acumulam-se — a imagem acústica não é o som puramente físico mas a sua marca (empreinte) ou representação psíquica (im agem ); contudo, é sensorial e até por vezes lhe chamamos material... 52 O que parece sólido em tudo isto é a associação íntima, no signo lingüístico, de dois elementos, um de carácter sensorial, logo perceptivo, outro da ordem do conceito. Há algumas defi­ nições, no Cours de linguistique générale, tão importantes como esta, em que a imagem acústica não entra. Pois nem a noção de signo lingüístico nem a de significante perdem nada com isso. M uito pelo contrário! Impunha-se examinar agora a maneira como Husserl e Saus­ sure concebem a estrutura do signo lingüístico. Digamos, para já, que ambos sublinham a sua arbitrariedade. Em Husserl é este o critério fundamental que lhe permite distinguir signo e im agem 53. Ambos insistem também no seu carácter um tanto misterioso: realidade de duas faces, como uma folha de papel, mas que é apreendida unitàriamente pela consciência. Deixamos agora Saussure, que supomos conhecido, para ex­ por em breves linhas o pensamento de Husserl, que é nesta ques­ tão o parente pobre. Ao ocuparmo-nos, há algum tempo, do assunto distinguimos duas fases no pensamento de Husserl: urna mais dualista, a das Investigações Lógicas, outra mais unitária, a de Ideias I I C o m efeito, é impossível falar de concepções totalmente diferentes, pois já na I Investigação, ao tratar da expressão verbal, Husserl parte de «duas coisas» ou de uma «realidade de duas faces» para sublinhar que entre elas existe a mais profunda «unidade». É habitual distinguir na expressão a sua face física, o signo sensível, e os actos doadores de sentido que lhe conferem signi-

51 Op. cit., trad. port., 69. 52 Op. cit., trad. port., 122. «L e signe linguistique unit non une chose et un nom, mais un concept et une image acoustique. Cette derniére n’est pas le son matériel, chose purement physique, mais l'empreinte psychique de ce son, la représentation que nous en donne le témoignage de nos sens; elle est sensorielle, et s'il nous arrive de l’appeler “ matérielle” , c'est seulement dans ce sens et par opposition à l'autre terme de l'association, le concept, généralement plus abstrait» (Cours...), 98. 53 L ’imagination selon Husserl, 91-4. 54 Art. já citado na nota 30 (in Perspectivas da fenomenología de Husserl), 99-101.

XXXIV ficação5S. Para o fundador da fenomenología esta distinção cor­ rente é inexacta, insuficiente pelo menos. O acto doador de sentido é objecto de ampla análise (§§ 6-15 da I Investigação,). Httsserl considera-o especificamente distinto da percepção que apreende o signo na sua materialidade. Simplesmente, a pura apreensão perceptiva do signo sensível ( pela vista ou pelo ouvido) não é a apreensão da expressão verbal autêntica ou completa: a expressão como tal é a expressão animada de um sentido56. O dado sensorial é pura matéria informe que tem de ser investida por uma forma, a significação. Esta ideia aparece já nas Inves­ tigações Lógicas e é desenvolvida nas Idéias I 57. A expressão é, pois, já, uma forma. O acto perceptivo encon­ tra-se totalmente recoberto pelo acto doador de sentido. Embora se exprima por vezes em termos dualistas ( a expres­ são é o suporte — Tráger— da significação), Husserl faz um esforço constante para ultrapassar este dualismo, sem contudo confundir ou misturar o que é de essência diversa. Chega a pôr em causa a existência das «duas faces» na relação significantesignificado, seja-nos permitida a terminologia saussuriana: «Uma relação fenomenológica mais aprofundada desta relação só pode' ria ser realizada pelo exame da função de conhecimento das ■ expressões e das suas intenções de significação. Resultaria daí que a concepção das duas faces a distinguir em todas as expres­ sões não poderia defender-se seriamente; ao contrário, a essência da expressão reside exclusivamente na significação.» 58 Ao retomar o assunto, na V Investigação, afirma que os actos doadores de sentido não são exteriores à expressão nem lhe são justapostos como se fossem apenas dados à consciência ao mesmo tempo. Trata-se da conexão de duas espécies de actos, não de uma soma, que produz um acto global unitário no qual se pode distinguir, de certa maneira, uma face material e outra espiritual59. Ê fácil verificar que, nestas diferentes formulações, nem sempre totalmente concordantes, Husserl se debate com um fenó» meno complexo, difícil de analisar e de dizer. Em Ideias II, a palavra (e, por extensão, a linguagem, o liv ro ) surge-nos ao lado de outras realidades que compõem o Umwelt, o mundo humanizado, atravessado por significações cul-

55 Log. Unt., II, 1, 31-2. (Significação e sentido são sinónimos para Husserl.) 56 Op. cit., II, 1, 38-9. 57 L'imagination selon Husserl, 35. 58 Log. Unt., II, 1, 49. 59 Op. cit., II, 1, 407.

XXXV turáis, mundo humano da vida quotidiana no qual nos movemos. A palavra, a pessoa, a obra de arte, instituições de qualquer espé­ cie, o simples objecto de uso diário que tem um sentido para nós, são reunidos sob a designação genérica de unidades com­ preensivas. Em qualquer dos casos trata-se de objectos espiritua­ lizados. A expressão verbal, para considerar apenas o exemplo que nos interessa, é já, do ponto de vista material, urna corporeidade espiritual (eine geistige Leiblichkeit) 60. Por outras palavras: encará-la como tal (com o mera realidade m a teria l...), ao nivel perceptivo, é puro contra-senso. • Ê fácil confrontar esta doutrina com a de Saussure e concluir que a raiz da inspiração husserliana é muito diferente da que nos propõe o «p a i» da lingüística moderna. O breve resumo apresentado parece confirmar o que escre­ vemos no início deste Prefácio: a teoria da Wortlaut (a que, nos §§ 8, 10, 12, Ingarden chama a sua teoria) é, afinal, a de Husserl. . . 61 Acrescente-se, no entanto, que Ingarden foi mais longe no desenvolvimento que lhe deu. Há que assinalar, antes de mais, a importante distinção entre conteúdo material e conteúdo formal da significação (§ 15). Seria do maior interesse confrontar a doutrina ingardiana com a fronteira traçada por Hjelmslev entre forma e substância do conteúdo, que Greimas retoma e desenvolve na Sémantique structuralé. Outro problema relacionado com o precedente: ao nivel das unidades de significação superiores à palavra também Ingarden traz algo de novo. Tanto Husserl como Saussure identificaram significação (sig­ nificado) e conceito. Ingarden distingue-os, como ficou dito. Retirar a idealidade à primeira para a atribuir ao segundo resolve o problema? Deixamos a questão em aberto. O certo é que, ao nivel da significação, o discípulo avançou em relação ao mestre. Por influência do próprio Saussure, citado numa nota do § 3 de A Obra de Arte Literária? È duvidoso. As fontes lin­ güísticas verdadeiramente importantes para o filósofo polaco parecem ser Humboldt, Wundt, A. Marty, Brugmann, Delbrück, nomes bem conhecidos, representantes de escolas ou correntes que em 1930 se não podem considerar de vanguarda... A estes

e0 Perspectivas da fenomenología de Husserl, 86-100, especialmente 98. 6r Curiosa urna nota ao § 9: «Parece que E. Husserl já se refere, ñas Investigações Lógicas, à diferença entre o material fónico concreto e o elemento formal significativo (. . . ) » . Não só nesta obra como nas Ideias, I, precisamos.

XXXVI sé juntam adeptos da lógica fenomenológica, sendo A. Pfãnder o mais significativo. De autores como Humboldt e outros, Ingarden desenvolve, contudo, os pontos em que foram precursores. Cita, por exemplo (nota ao § 11), urna frase de Humboldt que confere prioridade ao discurso em relação aos elementos que o compõem: frase e palavra. A unidade superior é, em principio, a que confere sentido às unidades menores (§§ 15-19, 21-23). Assim é que o livro de Ingarden nos oferece em 1930 esboços de semántica estrutural62.

§ 6. Percepção e significação A.-I. Greimas escreve na Sémantique structurale que a per­ cepção é «o lugar não lingüístico onde se situa a apreensão da significação» 63, que o significante designa «os elementos ou gru­ pos de elementos que tornam possível a aparição da significação, ao nível da percepção (...)»* * , que as significações «são reco­ bertas pelo significante e manifestadas graças à sua existência» 65. Afirmações análogas se encontram nas pp. 11, 18, 30 e outras 66. Para um leitor apressado todas estas formulações se eqüi­ valem e não levantam problema. Sobretudo se são lidas à luz da preferência expressa p o r Merleau-Ponty e pela sua atitude epistemológica, que caracteriza, segundo Greimas, a das ciências humanas em geral no séc. X X 67. Tudo parece claro e simples. Merleau-Ponty deu o golpe de misericórdia nos dualismos vetustos do passado, iniciando ou corroborando o reinado da clareza, da não-ambiguidade... Para desgraça dos espíritos cartesianos de todos os tempos ( dualistas ou não, o que é, afinal, secundário) as coisas nunca são simples, e Merleau-Ponty não fala de simplicidade mas precisamente de ambigüidade — ambigüidade em sentido forte e não no de con­ fusão ou mal-entendido.

62 De sintaxe distribucional também. 63 (Paris, Larousse, 1966), 8. 64 Op. cit., 10. 65 Op. cit., 10. 66 «Quel que soit le statut du signifiant, aucune classification de signifiés n’est possible à partir des signifiants. La signification, par conséquent, est indépendante de la nature du signifiant grâce auquel elle se manifeste», p. 11. Aqui a inspiração parece ser diferente e poderia ser interpretada em sentido husserliano. Quanto à frase citada na nota precedente, é tão vaga que admite todas as interpretações possíveis. 67 Op. cit., 7.

XXXVII N o que respeita a percepção e significação, apenas uma per­ gunta: será exactamente a mesma coisa dizer que a percepção é o lugar onde se apreendem as significações e afirmar que estas se manifestam ao nível da percepção? Ê discutível, claro... Tudo depende do sentido que se atribui a cada termo... Quer-nos pare­ cer, contudo, que a primeira formulação poderia ser compreen­ dida num sentido tradicional: «N ih il est in intellectu quod prius non fuerit in sensu»... Pois onde apreender as significações a não ser na percepção, na experiência, melhor, a partir da expe­ riência, visto que não há outro ponto de partida seja para o que for?! Mas, sendo assim, onde está a novidade? Visto que de novi­ dade se trata, tal interpretação é inaceitável. E a fórmula que melhor condensa o pressuposto epistemológico de Greimas parece ser a que aponta para a significação dada ao nível da percepção. Continuamos a perguntar: a apreensão significativa é uma e a mesma coisa que a apreensão perceptiva? É um elemento da percepção, identifica-se ou reduz-se à percepção? Este o verda­ deiro problema, o que deveria fazer reflectir. Mas até agora só ouvimos repetir. Antes de continuar, duas observações. Greimas não nos interessa de maneira especial. Partimos dele pela importância que tem no panorama lingüístico actual e por ser um bom representante de uma atitude que tende a genera­ lizar-se. Ê esta atitude que nos interessa, e justamente porque tende a generalizar-se. Segundo ponto: de que percepção se trata? Esta questão impõe-se porque Husserl distingue da percepção sensível ( a «sen­ sação» dos velhos tempos) uma outra percepção, intelectual, categorial. Percepção, intuição e experiência são termos pràticamente sinónimos. Temos assim duas formas diferentes de per­ cepção, de intuição, de experiência. No quadro da fenomenología husserliana a distinção é nítida e não é possível confundir os planos. Fora dele este alargamento pode ser fonte de confusões. Husserl não será, em certa medida, responsável pelo sentido vago e indeterminado que se dá por vezes à percepção? Talvez. Mas só por um conhecimento também vago e impreciso do seu pen­ samento. Terminamos este paréntesis precisando que ao falar de per­ cepção nos referimos sempre à percepção sensível ou doação originária em sentido estrito. Deixando agora de lado Merleau-Ponty e a relação entre a sua epistemología e a de Husserl, gostaríamos de voltar à teoria husserliana do signo lingüístico. Ou à teoria ingardiana da Wortlauit. No ponto que nos interessa, mestre e discípulo estão de

XXXVIII acordo: a expressão como tal ( o signo lingüístico de Saussure) nunca pode ser objecto de simples percepção porque investida por um significado. Por outras palavras: o significado não se apreende ao nível da percepção. Concordamos que o pensamento de Husserl não é de urna total clareza, a maneira como se exprime também não. Mas se as coisas mesmas não são claras e simples? Se são... ambíguas? Afinal, Husserl diz bem esta ambigüidade em vez de a dissolver. N o Dictionnaire encyclopédique des sciences du langage pode ler-se a propósito de «.signo»: «O ponto mais litigioso diz respeito à natureza do significado. Tem-se definido este como falta, ausên­ cia no objecto perceptível, que se torna assim significante. Esta ausência equivale, pois, à parte não sensível; quem diz signo tem de aceitar uma diferença radical entre significante e signifi­ cado, entre sensível e não sensível, entre presença e ausência. O significado, diremos tautológicamente, não existe fora da sua relação com o significante — nem antes, nem depois, nem para além; é o mesmo gesto que cria o significante e o significado, conceitos que se não podem pensar um sem o outro. Um signi­ ficado sem significante é o indizível, o impensável, o inexistente mesmo. A relação de significação é, em ccrto sentido, contrária' à identidade consigo: o signo é ao mesmo tempo o que está ali e o que falta: originàriamente duplo.» 68 ■_ Onde Husserl fala de material e espiritual aqui diz-sc «sensible et non sensible», «présence et absence», «marque et manque»... Desejo de empregar terminologia nova (nova?... Sartre não anda longe.. . ) para evitar o « espiritual», carregado de uma certa ideologia que se pretende evitar a todo o custo? Parece que sim. De qualquer modo não se cai em afirmações simplistas, de uma clareza total, que conduzem em regra a certezas curtas. E o im ­ portante é não esvaziar o real da sua carga de opacidade, de complexidade, de não coincidência consigo mesmo. Este o verdadeiro problema. O dualismo ou não dualismo é secundário, dissemos. Nunca se louvará suficientemente Mer­ leau-Ponty, por exemplo, por ter desembaraçado a filosofia do dualismo simplista de Descartes, que a experiência desmente a cada passo. Lembremos, a propósito, que Freud, inimigo in­ suspeito dos dualismos platónico e cartesiano, descobriu o fenómeno da ambivalência, característico de tantos mecanismos inconscientes normais e sempre detectável nas neuroses. Pode-

íS Op. cit. (París, Seuil, 1972), 132-3.

XXXIX ríamos citar alguns outros casos. Mas este não bastará para deixar antever que há dualismos falsos e dualismos certos? Poderá contestar-se: dualismo é uma coisa, ambigüidade e ambivalência é ou são outras. Aceitamos a objecção. Pensamos mesmo que ela é fecunda. Possível ponto de partida para uma reflexão generalizada que se impõe. Aqui apenas a tocámos, indi­ cando a direcção em que nos parece situar-se: a dialéctica do uno e do múltiplo, para além da alternativa monismo-dualismo. Afastámo-nos do nosso assunto, mas julgamos esta digressão oportuna. Usámos um método ultrapassado: parece que nos lim i­ támos a opor uma ou várias autoridades a outras tantas. Isto é só, de facto, o que parece. Invocámos os autores que melhor nos serviram para exprim ir as nossas próprias evidências. Mas o problema da evidência não será um dos prismas em que a dialéctica do uno e do múltiplo se refracta? A evidência é o injustificável último. Injustificável, no sentido de não admitir como possível ou necessária qualquer justificação ulterior. Plu­ ralidade injustificável como a pluralidade das consciências — de que decorre. Irredutível como ela, em larga medida. Num certo sentido, a pluralidade das consciências parece sef irredutível e nela encontramos a contingência fundamental69.

§ 7. Estratos e funções da linguagem Reúnam-se alguns fios que ficaram soltos nas páginas ante­ riores deste Prefácio. Ingarden usa com frequência a palavra função no sentido de função da linguagem e relaciona, de modo pouco claro, estra­ tos e funções (pp. x x v i - x x v i i ). Em sua opinião, a função expres­ siva, que Bühler divulgou na Sprachtheorie, remonta a Husserl e a Twardowski (p. xxvn). A este propósito entrecruza dois pro­ blemas diferentes: o da expressão verbal e o da função expres­ siva, como é fácil concluir, pelo que atrás dissemos. Do prim eiro nos ocupámos no § 5; do segundo nos ocuparemos em breve. Antes disso importa explicitar, ao menos nas suas coorde­ nadas fundamentais, as relações entre estratos e funções. A asso­ ciação dos dois no espírito de Ingarden vem de 1930 (pp. xxvix x v i i ). Mas o assunto foi amadurecendo após essa data. O estudo de 1958 As Funções da Linguagem no Espectáculo Teatral é uma prova disso.

69 J.-P. Sartre, L ’étre et le néant (Paris, Gallimard, 1943), 362-3.

XL Ingarden lembra, no § 1, que toda a obra literária é uma construção lingüística bidimensional. Enumera a seguir os quatro estratos de 1930, e no § 3 aparece a nota a que já se fez referência (p . x x v i i ), na qual Bühler, Husserl e Twardowski aparecem pela segunda vez associados. Falta acrescentar o próprio Ingar­ den que, num trabalho de 1956, distinguiu cinco funções. Destas, afirma, apenas utiliza quatro, no estudo em questão: a função apresentativa, a função expressiva, a função de comunicação, a função de persuasão. A originalidade e a finura desta análise ingardiana do espec­ táculo teatral são inegáveis, o que justifica a sua recente tra­ dução francesa10. Quanto ao assunto que nos interessa, dizemos que amadu­ receu se entendermos por isso que o discípulo de Husserl e de Pfãnder se preocupou cada vez mais com o problema das funções da linguagem, não que a relação entre estratos e funções se tenha clarificado. Tal clarificação, pelo menos, não é visível no estudo publicado como Apêndice de A Obra de Arte Literária. Mas se tentarmos, por conta própria e para os nossos lei­ tores, introduzir uma certa ordem no imenso material que nos é proposto, algumas linhas de organização começam a desenhar-se.

a) A base da linguagem: 1.° e 2.° estratos

O estrato fónico-linguístico e o estrato das unidades de sig­ nificação podem reduzir-se, num sentido muito geral, às duas faces do signo saussuriano: significante e significado. Falamos de Saussure e não de Husserl por nos dirigirmos a um público de formação lingüística. Na realidade, a terminologia, a inspi­ ração, o gosto das distinções subtis, são de origem husserliana, já o verificámos. O 1° e 2 ° estratos, Ingarden não cessa de o repetir, possuem uma importância excepcional, que lhes confere um lugar à parte no conjunto. Impossível pô-los ao lado dos outros, quer em si mesmos, quer no papel que desempenham na formação dos restantes estratos. Constituem a base da linguagem. Não será esta a ideia do autor, no início do estudo sobre teatro, ao afirmar que toda a obra literária é uma construção lingüística bidimen­ sional?

70 Poétique, 8 (Paris, Seuil, 1971).

XLI O Dictionnaire encyclopédique des sciences du langage faz referência ao acto lingüístico, que Bühler aproxima do acto de significar dos medievais ou ainda do acto doador de sentido iso­ lado por Husserl71. E o autor do artigo « Langage et action» acrescenta: «É , pois, um acto inerente ao acto de falar e inde­ pendente dos projectos nos quais o discurso se insere. O estudo deste acto faz assim parte integrante do estudo da língua e cons­ titui mesmo o seu núcleo central. Em que consiste agora esta actividade lingüística original, esta pura actividade do significar?» 72 O passo transcrito serve de introdução ao acto de comuni­ cação de K. Bühler e às suas funções da linguagem, assim como ao desenvolvimento posterior que lhe deu Jakobson. Encarar segundo esta perspectiva o 1° e o 2.° estratos é simplificar em extremo a «análise engenhosa e altamente téc­ nica» de que falam Wellek e Warren; não eremos, contudo, falsear o pensamento de Ingarden. Pode concluir-se este breve apontamento dizendo que não há funções (ou «p ro je c to s ») nos dois primeiros estratos de A Obra de Arte Literária — considerados na sua complementari­ dade. Precisão fundamental, pois veremos em breve que ambos são de grande importância em relação a uma ou outra função quando tomados separadamente. Só em conjunto, formando uma unidade, é lícito ver neles o «p rojecto fundamental» dentro do qual se especificam e arti­ culam o ou os «projectos particulares» de cada mensagem: as nossas conhecidas funções da linguagem.

b) A função expressiva e o 1.° estrato

A função expressiva tem sido mencionada com frequência ao longo deste Prefácio. Ê natural começarmos por ela. Acresce que está intimamente relacionada com o 1.° estrato. Ê no cap. 4 (§§ 9-13), consagrado ao estrato fónico-linguís:ico, na nota ao § 9 atrás referida (p. xxvn), que surge pela primeira vez a função expressiva. E o estudo que aqui se publica cm Apêndice remete para o parágrafo que fecha o capítulo.

-

426. B. M alm berg fala também na influência das Investigações Lógide Husserl em K. Bühler (op. cit.), 308. 72 Dictionnaire..., 426.

XLII Nesse § 13, Ingarden fala da função expressiva na acepção de Husserl73 e põe em evidência a importância do estrato fónico na manifestação dos vários estados psíquicos, na vida psíquica concreta das personagens ( trata-se de teatro...), irredutível à zona da pura comunicação do pensamento. Estamos muito perto da função expressiva de Bühler ou função emotiva de Jakobson! Os exemplos dados por Ingarden assemelham-se muito com os deste último a u to r74. Mas será possível filiar esta função em Husserl e em Twardowski? N o respeitante a Husserl, não parece errado responder afirmativamente desde que se façam .certas precisões. Sem descer a grandes minúcias de exegese, pode resumir-se o pensamento de Husserl, nos §§ 6-8 da I Investigação, da se­ guinte maneira: uma expressão significa, por um lado, graças aos actos doadores de sentido; manifesta ou exprime, por outro 75, tal ou tal acto psíquico daquele que fala. Por outras palavras, a comunicação entre duas pessoas faz-se através de expressões em que alguém se exprime e em que, ao mesmo tempo que se exprime, comunica algo. A estas duas faces da «expressão na sua função comunicativa» 76 chama Husserl função expressiva11. M uito à sua maneira, distingue nesta um sentido estrito ou pró­ prio: a função expressiva propriamente dita e um sentido largo que engloba as duas faces da comunicação. Note-se que as vivências ou actos psíquicos em questão não são exclusivamente de cariz afectivo ou emotivo. Provam-no os exemplos dados. Ingarden deixa subsistir a mesma generalidade, mas acusa-se nele, de maneira mais acentuada, a tendência para opor os actos emotivos à zona da pura comunicação do pensa­ mento (§ 13, por exemplo). Há, portanto, no filósofo de Cracovia uma maior aproxima­ ção de Bühler-Jakobson.

73 Ao contrário do que acontece no § 9 de A Obra de Arte Literária e no § 3 do Apêndice, a referência a Husserl no § 13 não aparece em notas de rodapé mas no corpo do parágrafo. Isto leva a supor que data de 1930. Mas nada podemos concluir em segurança por não dispormos da primeira edição. 74 Essais de linguis tique générale (Paris, Les Editions de Minuit, 1963), 214-6. A A. Marty (muito citado por Ingarden) diz Jakobson que deve a designação de função emotiva. 75 Kundgibt (Log. Unt., II, 1), 32.; 76 Op. cit., II, 1, 32. 77 Kundgebende Funktion, op. cit., II, 1, 33.

XLIII Resumindo: a função expressiva de Ingarden não pode reduzir-se ao estrato fónico, mas está intimamente relacionada com ele, o que ninguém contesta hoje! c) A função apresentativa, o 4.° e o 2.° estratos

Enquanto a função expressiva depende do 1° estrato, mas há a considerar nela outros factores, verifica-se uma tendência marcada para aproximar mais — fazer corresponder — a função apresentativa, do 4.° estrato (objectidades apresentadas) e a função de reprodução imaginativa, do 3° ( os tais « aspectos dis­ poníveis», aos quais se não fez ainda o comentário que merecem). Sobre a função apresentativa releia-se o § 19, em que é citado o artigo de Bühler de 1920 (p. xxvn). Ingarden critica-o, mas não terá vindo dele a influência e mesmo a terminologia? Parece que sim. E, uma vez mais, há razões para crer que esta fonte se amalgamou com outra, que é mais profunda e vem de mais longe — a leitura, o ensino de Husserl. Numerosas análises de Ingarden levam à conclusão de que a função apresentativa corresponde ao 4° estrato. Mas este está numa relação estreita com o 2° estrato, o das unidades signifi­ cativas! Nessa medida, a função apresentativa o está também. Repare-se na ordem de sucessão, à primeira vista pouco compreensível, dos estratos. O 3° estrato é deixado para o fim, caps. 8 e 9 (§§ 39-46), e o 4.° estrato é estudado logo a seguir ao 2°. Mais concretamente, do 2° estrato se ocupa o cap. 5 (§§ 14-26); do 4.°, o cap. 7 (§§ 32-37). O cap. 6 (§§ 27-31) serve de transição e a sua finalidade é mostrar os laços que unem o nível da significação e o nível do mundo apresentado. Ê nesse capítulo, nomeadamente no § 28, que Ingarden afirma com insistência: o conteúdo de sentido das frases é o elemento decisivo para a constituição das objectidades apresen­ tadas; numa frase que enuncia algo a respeito de um objecto X, este objecto é determinado péta significação de sujeito da frase; as objectidades apresentadas numa obra são-no graças às uni­ dades de significação; as relações objectivas desempenham uma função essencial na constituição do «m undo» que um texto ou uma obra nos apresentam. Qualquer que seja a dimensão da unidade escolhida (frase, período, obra) o pensamento de Ingarden não varia. Ora é também neste cap. 6, e logo no título, que aparece a Darstellungsfunktion, função apresentativa segundo Ingarden. Abrimos um breve paréntesis para relembrar o que já atrás icon tdito ( nota 42 deste Prefácio). A Bedeutung husserliana

XLIV pode ser considerada segundo duas maneiras diferentes embora estreitamente relacionadas: como acto f o acto doador de sen­ tido,) e como unidade de significação. Ambas as acepções se encontram nas Investigações Lógicas, mas nem sempre é fácil desembrenhá-las uma da outra. O medo constante de recair no psicologismo explica urna nota do § 15 de A Obra de Arte Literária, em que Ingarden marca urna certa distância em relação a A. Marty, que vê na significação um acto ou uma vivência... Isto não tem nada a ver com a sua própria concepção, escreve o filósofo polaco. Mas as coisas não são assim tão simples... Ingarden sabe-o e, talvez por isso, volta a debater longamente o problema no § 18, para concluir que a referência intencional de um nome a um objecto através da sig­ nificação é o reflexo do pensar intencional contido no acto doa­ dor de sentido. Aqui se encontram refeitos, ao fim e ao cabo, os dois sentidos da Bedeutung husserliana. Considero pois o puro acto de significar como o terreno comum ou o «p rojecto fundamental» da comunicação lingüistica, dentro do qual se explicitam as várias funções da linguagem. In ú til sublinhar a importância e actualidade desta concepção.

d) A função apresentativa (3.° e 4.° estratos)

e

a

de

reprodução

imaginativa

Assim como a passagem do 2° para o 4.° estrato é feita cuidadosamente no cap. 6, assim também os últimos parágrafos do cap. 7 são parágrafos de transição — do 4 ° para o 3° estrato. Pensamos, em especial, no importante § 37. Aí se estabelece o confronto entre a função apresentativa e uma outra, que pode­ ria chamar-se função representativa ou de representação mas que preferimos designar por função de reprodução imaginativa ( ou, simplesmente, função de reprodução) por razões de clareza78.

78 Relembre-se o que dissemos na nota 35. É a Darstellungsfunktion de Ingarden que traduzimos por função apresentativa. Ao lado desta surge agora a função de reprodução ou função de reprodução imaginativa: Abbildungsfunktion por vezes, mais frequentemente Funktion der Zuerscheinungsbringen ( Erscheinung: aparição, visão). 0 § 37, onde todas estas designações aparecem, merecia um estudo aprofundado. A Reprasentationsfunktion aí se encontra também, com dois sentidos diferentes. Em rigor só deve aplicar-se ao 3.° estrato. Ingarden emprega-a pouco, certa­ mente para evitar a excessiva carga sémica da palavra Reprãsentation na psicologia do fim do século xix e até na fenomenología husserliana. A seu exemplo evitámo-la também.

XLV Entre estas duas funções da linguagem há uma grande diferença e uma grande afinidade. Na primeira temos o que nos é apresen­ tado de maneira puramente intelectual. Apresentação opõe-se, pois, a aparecimento, reprodução intuitivos. Na segunda função as coisas são-nos dadas como se as estivéssemos vendo. É esta, afinal, a «função» do 3° estrato: levar o leitor a ultrapassar o que Husserl e Ingarden chamam o domínio das intenções vazias para adoptar uma intencionalidade intuitiva. Como se estivesse vendo... Como se... A modificação de neu­ tralidade ou passagem ao irreal não perde nunca os seus direitos, no domínio da literatura de ficção como no do espectáculo tea­ tral. Mesmo neste a percepção tem de ser neutralizada para que o espectáculo não se perca como espectáculo e a obra de arte mantenha a sua especificidade. Muitos racistas, sem dúvida, assis­ tiam à representação de Otelo, numa tarde de Agosto de 1822, em Baltimore. Mas só o soldado inculto, de guarda no interior do teatro, se precipitou para o palco de espingarda em punho, no 5.° acto, para defender Desdémona da fúria de um negro 79. Os primeiros tinham-se instalado na atitude necessária à ilusão teatral85. Estavam no teatro, assistiam a uma «representação», a um espectáculo... O segundo confundiu os planos. Voltando à literatura, a única forma de intuição a que o leitor pode recorrer é a intuição imaginária, visto que a intuição por excelência, a percepção, lhe está por princípio vedada (§§ 34, 42). Desenvolveremos este aspecto da questão no parágrafo se­ guinte. Ao 3.° e 4° estratos correspondem, pois, duas funções. Duas funções diferentes? Diferentes apesar da conexão existente entre elas? Ou duas modalidades de uma mesma função? O leitor não terá dificuldade em seguir a reflexão de Ingarden. As três ma­ neiras de encarar o problema estão presentes na obra de 1930, devendo reconhecer-se que as duas primeiras oferecem larga margem de preferência. N o entanto, ao escrever As Funções da Linguagem no Espectáculo Teatral, em 1958, Ingarden evoluiu, e foi na terceira solução que se fixou 81. Temos assim (e abstraindo da sua aplicação ao teatro) a função apresentativa, que pode revestir carácter puramente con­ ceptual ou processar-se de tal modo que a apresentação dos

n Stendhal, Racine et Shakespeare (¡Paris, J.-J. Pauvert, 1965), 38-9. 80 Gp. cit., 36-42. 61 É possível que esta solução seja já adoptada em 1956 no livro Uber die Ubersetzung, que não conhecemos, onde apresenta as cinco funções da linguagem (cf. nota ao § 3 do trabalho de 1958).

XLVI objectos intencionados se faça em aspectos evocados imaginati­ vamente; a função expressiva que, como vimos, deve muito a Husserl e a Bühler; a função de persuasão, porventura a mais autenticamente ingardiana... Não viria, contudo, a despropósito confrontá-la com a função apelativa de Bühler-Jakobson. Temos, finalmente, a função de comunicação. Vimos já (p . x x i, x l i i ) que esta designação se encontra em Husserl, e é bom relembrar o contexto em que aparece. Husserl não pensava, por certo, nas funções da linguagem tais como hoje as enten­ demos. Embora a referência a Twardowski, precisamente à obra a que Ingarden atribui tanta importância nesta matéria, devesse ser analisada mais de perto. De qualquer modo, sabemos todos hoje que a comunicação não é uma função que se possa colocar ao mesmo nível das outras, que ela é a fronteira que separa uma tradição de dois milênios — a linguagem, expressão do pensamento — da lingüís­ tica moderna. Sem abandonar por completo a perspectiva tradicional, Hus­ serl introduz, antes de Saussure, a ideia fundamental de que a linguagem serve para comunicar. À sua maneira, assim como que de passagem, como quem lança sementes num vasto campo, tantas e tão variadas que em muitos casos ficam longo tempo es­ condidas ou só descobrimos os seus frutos nos terrenos vizinhos. Mas, afinal, quais as funções da linguagem propriamente ditas? E quantas? Temos as de Bühler, as de Ingarden, as de Jakobson, para citar só estes. Terá Jakobson dito a última pala­ vra sobre o assunto? Pela nossa parte não o cremos. Ê mais que provável que novas funções venham a ser descobertas. Porque não?

§ 8. Para uma estética de intuição Escrevemos no início deste Prefácio que o presente livro de Ingarden nos dá, ao mesmo tempo, menos e mais do que o seu título promete. A obra literária é o objecto principal deste estudo. Mas, sem deixar de o ser, torna-se o fio condutor que o filósofo de Cracovia manobra com grande liberdade. Dela se passa ao teatro, à pantomima, ao film e; a partir desse ponto fixo considera a obra científica, entrevê o domínio das artes plásticas (§§ 56-60). É natural que só mais tarde tenha com­ preendido que a literatura fazia parte, desde o início, de um conjunto mais vasto. Um projecto apenas meio consciente em 1930. Da sua consciencialização nasceu Untersuchungen zur Onto-

XLVII iogie der Kunst em 1962. Eis mais ou menos o que diz o Prefácio da terceira edição de A Obra de Arte Literária. Ingarden reconhece, pois, o carácter excessivo do seu livro. São acontece o mesmo com o que pode chamar-se o seu aspecto deficitário: a dimensão que dá ao termo literatura está longe de poder abranger todas as produções literárias. Leia-se o § 25 a), em que responde às objecções de Kate Hamburger. A despeito da importância que dá à persuasão, Ingarden não nos convence a não ser no respeitante à modifi­ cação de neutralidade. N o essencial K. Hamburger tem razão: o conceito ingardiano de obra literária é demasiado estreito, aplicável somente à poesia épica e dramática. O mundo nelas apresentado apenas simula ou reproduz a realidade. Por outras palavras, a forma de arte, a corrente literária que Ingarden toma constantemente por modelo é a arte realista. Aí vai buscar, como é natural, as suas realizações mais características: romance, no­ vela, drama. O romance histórico, o drama histórico ocupam mesmo um lugar privilegiado. Raras vezes se fala da lírica em A Obra de Arte Literária, e sempre em breves apontamentos. Endurecemos talvez a posição de Ingarden... Em 1930 muita água tinha corrido por sobre o programa realista, novos mani­ festos haviam surgido, não só em literatura tom o em pintura, em música, em vários sectores da arte. O espírito curioso e de larga cultura do pensador polaco não o ignora! A prova é que admite a possibilidade de outros cânones artísticos. Admite-os em teoria, parece-nos, e, o que é significativo, como casos-limites ou excepções (§§ 38, 46, 52...). De uma maneira ou de outra logo regressa à norma, ao terreno familiar. Terreno não indiscutivel­ mente aceite, por uma qualquer espécie de direito, mas admitido como um facto ou escolha tácita. Tudo isto diz respeito ao 3° estrato e à excepcional impor­ tância que Ingarden lhe atribui. E o 3.° estrato, por sua vez, remete-nos para o papel da imaginação na leitura, na leitura da ficção em especial, visto que dela se trata, de maneira por assim dizer exclusiva. Tantas vezes abordámos já este 3 ° estrato, com mais ou menos demora, que nos podemos resumir finalmente. Para o compreender, duas noções husserlianas de base. Num primeiro tempo temos actos de pura intenção ou de intenção vazia, pensamento conceptual vazioS2, consciência signitiva ou significativa... versus intuição ou preenchimento. Impõe-se dis­

82 A distinguir de uma intuição das essências!

XLVIII tinguir, em seguida, os vários actos intuitivos: percepção (nas suas diversas modalidades), imaginação, memória, intropatia... O acto intuitivo por excelência, segundo Husserl, é a per­ cepção sensível, a que chama também experiência ou doação originária83. É ela que nos dá as coisas mesmas, «em pessoa», «em carne e osso» (metáforas husserlianas), numa plenitude que é a mais perfeita, embora prometa mais do que é capaz de dar. A sua estrutura é complicada; üs coisas no espaço e no tempo só se oferecem em esboços,, perfis '(Abschattungen), aspectos sempre parcelares, fragmentários, qug sucessivamente se enca­ deiam e completam. Como horizonte de cada acto perceptivo, um feixe de intenções vazias, tspáÇos abertos a futuras intuições, que podem ou não revestir a intencionalidade perceptiva. O § 40 de A Obra de Arte Literária contém um bom resumo da teoria husserliana da percepção. Uma nota, logo no início, es­ clarece: no período de Gõttingen, Husserl usou com frequência Ansicht (aspecto). Mais tarde Aspekt, Abschattung M. Ingarden prefere guardar a designação antiga, Ansicht. Estamos agora a ver a infra-estrutu&i do 3.° estrato, que lhe serve ao mesmo tempo de modelo. O Ansicht esquematizado é, assim, o inesperado horizonte que surge, aqui e além, numa obra literária — narrativa, descri­ ção, diálogo— e que, graças à imaginação do leitor, actualiza o que é apenas «esquema» vazio, disponibilidade. Vemos determinada

83 N a última nota ao § 34 de A Obra de Arte Literária, Ingarden afirma que Husserl considera também os actos de imaginação como originàriamente doadores. E indica como fonte o manuscrito de um curso de 1922. N ão conhecemos este manuscrito nem o consultámos para o nosso estudo L'imagination selon Husserl. Tudo quanto podemos dizer é que esta con­ cepção é contrária à doutrina de Husserl na totalidade das obras que utilizámos. Ela é contrária também ao próprio Ingarden! Não podemos afirmá-lo, mas é possível que se trate apenas de um mal-entendido ocasionado pelo gosto husserliano das distinções subtis de terminologia. Porque o texto a que esta nota se reporta continua a distin­ guir a «apresentação» (Prasentation) da percepção, que é uma autodoação em pessoa da «apresentação» realizada pela imaginação ou fantasia. A única novidade que encontramos aqui é o termo de Prasentation, normalmente reservado à percepção (apresentação no séntido forte: tornar presente), atribuído à imaginação. A esta são normalmente consagradas as designações de Reprasentation ou Vergegenwãrtigung (representação, presentificação). Isto é, de facto, novo e parece contraditório porque a distinção entre percepção e imaginação mantém-se. Relembremos, de passagem, o que dissemos na nota 35 a propósito de apresentação. w Foi este último termo que se generalizou.

XLIX rua de Paris (§ 42), acompanhamos determinada personagem e com ela atravessamos corredores e descemos -escadas (§ 45). Fre­ quentemente nos identificamos com as personagens que mais nos tocam ... Instantes fugidios e transitórios como as Abschattungen do acto perceptivo, enigma de plenitude e esvaziamento, onde tudo está sempre a recomeçar e prestes a morrer. Espaços privi­ legiados de um livro que se dilatam, abrem o tempo para repeti­ ções imaginárias de paisagens experimentadas num passado que, por momentos, se anima e volve quase-presente... Espaços elás­ ticos, de dimensões incertas, que também podem concentrar-se num ponto só, na intensidade de uma quase-presença resumida. Já fizemos referência neste Prefácio à problemática da « obra aberta» (pp. xxm -xxv). Sem negar as linhas de convergência com Eco ou com Barthes, pode concluir-se agora que o ângulo de abertura que Ingarden nos propõe em A Obra de Arte Literária é mais restrito e a intenção diferente. A margem concedida aos leitores para que a partir de experiências diversas se apropriem da obra, fazendo dela leituras pessoais e diferentes, nasce apenas do 3.° estrato. Ê através dos. horizontes abertos pelos aspectos esquematizados que a liberdade imaginativa pode mover-se, saindo das páginas do livro, passando a uma atitude intuitiva que recria coisas e pessoas, que as toca como se as estivesse vendo. Esta a primeira conclusão que se impõe. Mas há algo de mais importante a dizer sobre o assunto. A intuição imaginativa, ao introduzir-se na leitura, é o factor de valorização estética, por um lado. Mas, p or outro, desfigura a obra literária. Eis um pro­ blema sério que Ingarden formula no § 63 do seu livro. Convém não esquecer o propósito antipsicologista que o atravessa, as repetidas advertências de que se não deve confundir a obra e o seu autor, explicar a primeira pelas experiências, a vida, a história daquele que a escreveu. A obra é considerada em si mesma como entidade autónoma e, neste sentido, fechada85. O mundo que nela se apresenta é, de facto, apresentado na pró­ pria obra, na sua imanência. Uma transcendência na imanência, se quisermos, como é o intencional husserliano correctamente interpretado.

85 Inútil sublinhar a orientação comum, neste ponto, entre as cor­ rentes de análise literária mais vivas por volta de 1930: a Estilística, o Xew-Criticism americano, o Formalismo russo. Acrescente-se a que provém do impulso fenomenológico e que é visível em R. Ingarden, M. Dufrenne e outros.

L Na filosofia de Husserl o mundo real foi definitivamente posto entre paréntesis pela redução transcendentalSô. Poderá sê-lo na literatura? Pela dupla influência de pressupostos correntemente aceites pelos padrões da análise literária da época e do imperativo fenomenológico de regresso às próprias coisas (no caso, as próprias obras...), Ingarden mantém com intransigência o princípio da imanência. Mas a maneira como concebe o 3 ° estrato e o valor que lhe atribui não constituem uma ameaça séria a esta mesma ima­ nência? Convém ler os §§ 4446, em que o papel privilegiado que os aspectos desempenham na apreensão estética de uma obra lite­ rária é posto em evidência. Mais uma vez estamos em presença de um pensamento que se elabora diante de nós e não escamoteia as dificuldades. O 3.° estrato tem uma carga de valor estético que lhe é própria, nisto, como noutras coisas, um dos elementos a considerar na polifonia da obra. Quem diz polifonia não pode pensar m onopólio... Ingarden não consegue evitar, contudo, um desequilíbrio, um quase açambarcamento do estético pelo 3.° es­ trato, a que corresponde, como se viu, a função de reprodução imaginativa. O valor artístico de uma obra depende, em última análise, da sua capacidade de evocar abreviadamente, por fulgurações momentâneas, o mundo real das coisas, dos lugares, das pessoas, das experiências do leitor. A estes momentos excep­ cionais que «fazem ver» chega a chamar instantâneos fotográ­ ficos. A sua importância, quase diríamos o seu volume, na obr.a faz com que esta atinja ou não o nível da grande arte. Mas, afinal, ainda estamos no domínio da imanência? O mundo real fo i ou não fo i definitivamente posto entre parén­ tesis? O 3.° estrato ameaça este equilíbrio; a intuição imaginária pode fazê-lo ressurgir a cada instante. A estética da intuição (da Einfühlung) foi uma corrente muito viva na Alemanha em fins do séc. X I X e princípio do séc. X X . Tem raízes pré-fenomenológicas, e o movimento fenomenológico, nalguns casos, serviu-lhe de aliado. Nela se podem incluir Th. Lipps, J. Volkelt, Max Scheler, M oritz Geiger, Roman Ingarden87.

86 Ao escrever estas palavras temos a consciência de form ular um problema, não de apresentar um a solução. 87 R. Bayer, Histoire de Vesthétique, 346-9; H. Spiegelberg, The phenomenological movement I, 214.

LI Imanência, intuição... Tal como nos surgem em Ingarden, não podemos descobrir uma certa contradição entre duas exi­ gências de pólo oposto? Mas a contradição não é total. A modi­ ficação de neutralidade nunca perde os seus direitos e age como um travão. O leitor é quase levado a ver, a ouvir, a atravessar o livro para passar à realidade. Mas esta é sempre uma quase-realidade em que nunca chega a acreditar a sério. Pode até reviver, num esforço de regresso ao passado ( remoto ou próxim o), mas é um esforço antecipadamente fracassado pois nunca fará .brotar a frescura do que foi vivido na presença, na coincidência, na verdade. Em vez de contradição será talvez mais exacto falar de tensão. O conceito de obra de arte em Husserl tem por base o que designámos por «prim ado da percepção». Neste como noutros pontos, o discípulo permanece fiel ao professor de Gõttingen, queremos dizer, concretamente, à primeira fase de Husserl®. Também em Ingarden se deve falar, apesar de tudo, do primado da intuição. Não será a intuição que leva o filósofo polaco a passar naturalmente da literatura ao mundo do espectáculo ( teatro, pantomima, film e), às artes que fazem ver de maneira propria­ mente dita? Isto explicaria a sua preferência pelo teatro, a que atribui a primazia, dentro dos géneros literários (§ 63). Primazia porquê? Dentro da sua lógica, tal primazia explica-se. Formulamos uma hipótese. Uma afirmação seria abusiva. Até porque nos §§ 49-50 a intuição perceptiva se alarga. Assim como Husserl admite uma percepção ou intuição intelectuais, Ingarden fala-nos, por sua vez, de uma visão das qualidades metafísicas: o que, para além dos cenários imaginários que ajuda a recriar, uma obra comunica. Trata-se, como é óbvio, de um comunicar intuitivo que elimina distâncias, da capacidade de revelar, de interpelar, de tocar o leitor no mais profundo de si mesmo. Umas breves palavras a concluir este Prefácio. N o livro rico e denso que é A Obra de Arte Literária há coisas a mais para a

88 N a primeira fase, Husserl utiliza duas categorias para definir o estético: a presentificação (Vergegenwartigung) e a modificação de neu­ tralidade. N a segunda fase guarda só a Neuíralitdtsmodifikation, e a Vergelenwartigung desaparece. (Perspectivas da Fenomenología de Husserl), 104-5. Haveria que m ostrar o parentesco entre a Vergegenwartigung husserliana í a Abbildungsfunktion de Ingarden.

LU nossa exigência actual de especialização. Lingüística, literatura, estética, lógica, fenomenología, ontologia... Estará Ingarden definitivamente ultrapassado, ou não será mais acertado ver nele um precursor, sobretudo ao afirmar a necessidade de uma reflexão filosófica sobre lingüística e litera­ tura? O problema fo i posto no início destas considerações (p. x). É indiscutível que os bons (ou maus) velhos tempos de Descartes e Newton passaram: um edifício único com vários compartimentos ou a famosa árvore com raízes, tronco e ramos de nomes diferentes. Mas, pela mesma razão, não deveriam pas­ sar também os múltiplos «a libis» de um positivismo que não cessa de renascer periódicamente das próprias cinzas? Parece indispensável distinguir hoje (mais do que Ingarden o fez...) três coisas: primeiro, o que é do domínio autónomo de cada ciência e que só por abstracção se pode separar dos pressu­ postos filosóficos, teológicos ou políticos a que em regra testá ligado. Isto é sobretudo válido numa perspectiva diacrónica. É possível reconstruir a história da matemática, da física ou da lingüística numa síntese, aliás sempre provisória, registando o que, num processo de selecção e sedimentação, o trabalho de séculos fo i acumulando, rejeitando, corrigindo, aperfeiçoando de maneiras várias. (Há épocas de rotura e épocas de continuidade, por exemplo.) Em segundo lugar, e aqui pensamos na «ciência que se faz», há que explicitar os pressupostos filosóficos e ideológicos que informam a investigação em cada ciência nas suas várias cor­ rentes, escolas ou tendências. Explicitá-los, assumi-los. Finalmente, e no respeitante aos sectores que de maneira especial nos interessam: importa criar uma Filosofia da Lingua­ gem (que não dispensa, talvez, uma Filosofia da Lingüística...) e uma Filosofia da Literatura — designação bem mais pertinente do que Teoria da Literatura, reflexão que englobaria esta última e iria. muito mais longe. M

a r ia

M a n u e l a S a r a iv a

D e d ica d o a N u n a

Prefácio da segunda edição

Passaram-se mais de trinta anos sobre a redacção deste livro. Entretanto, o mundo sofreu muitas modificações. Se hoje me resolvo a publicar de novo este livro, move-me não só a cir­ cunstância de ele se encontrar esgotado desde há muitos anos, sendo até rara a possibilidade da sua consulta nas bibliotecas, mas também o facto de continuar ainda actual, apesar das enormes transformações que se operaram na atmosfera cultural, e de até nos últimos anos ser alvo de maior consideração do que na altura da sua primeira aparição. Nesse ano de 1930 foi um empreendimento arriscado tentar uma ontologia da obra de arte literária e discutir problemas não só puramente, estru­ turais como ontológico-existenciais, tratando então a obra lite­ rária à luz do problema Idealismo-Realismo. Foi precisamente sob este aspecto que a situação se modificou profundamente nos passados 30 anos. Neste lapso de tempo, tais problemas ou outros que lhes são análogos foram abordados de diversos ângulos e sob vários aspectos, e muitas vezes tratados num espírito muito afim do meu. O interesse por semelhantes problemás aumentou visivelmente não só na Alemanha como ainda noutros países, Se isto se deve à influência do meu livro ou se aconteceu completamente à margem dele, não tem importância de maior. Despertou entretanto a consciência de que os pro­ blemas ontológicos referentes à obra de arte literária não são de modo algum assuntos relativamente isolados da ciência da literatura, mas estão, pelo contrário, intimamente relacionados com as várias questões fundamentais da filosofia: o problema c. pois, formulado no sentido que se ajusta à intenção do presente livro. Deste modo, não ficará a obra isolada no mundo científico como nos inícios da sua existência. Ao mesmo tempo, quer parecer-me que as suas análises e perspectivas, no que toca a problemas ulteriores, ainda não foram de maneira alguma exploradas em medida satisfatória

4 posição é irjtermediária entre as duas posições antagónicas. Para evitar a extensão desnecessária do meu livro já volumoso, e ainda para ajudar o leitor a assumir uma atitude pura em relação ao objecto da investigação, desisti de uma vincujação expressa às teorias existentes. Tal vinculação tem normalmente por conseqüência a remissão do leitor para esquemas conceptuáis preexistentes, o que essencialmente dificulta a visão pura das situações de facto presentes. Apesar de as minhas investigações terem por tema principal a obra literária, e sobretudo a obra de arte literária, os motivos que, em última análise, me levaram a tratar este tema são de natureza filosófica geral e transcendem amplamente este assunto regional. Estão intimamente relacionados com o problema Idealismo-Realismo, que desde há anos me preocupa. Como tentei demonstrar nas minhas Observações acerca do problema Idealismo-Realismo \ o conflito entre o «Realism o» e o «Idea­ lismo» abrange vários grupos de problemas muito intrincados que é necessário distinguir e tratar isoladamente antes de se abordar o problema principal metafísico. Em conseqüência disso, há várias vias que nos preparam o acesso a este problema prin­ cipal. Uma delas está relacionada com a tentativa do chamado Idealismo Transcendental de E. Husserl em conceber o mundo real e os seus elementos como objectividades puramente inten­ cionais, que têm o seu fundamento ontológico e a sua razão determinante nas profundidades da pura consciência constitutiva. Para se tomar posição perante esta teoria, elaborada por E. Hus­ serl com extrema subtileza e através da exposição de situações reais sumamente importantes e de difícil captação, é, entre outras coisas, necessário pôr em relevo a estrutura essencial e o modo de ser do objecto puramente intencional, para em seguida exa­ minarmos se as objectividades reais, pela sua própria essência, podem ter essa mesma estrutura e esse mesmo modo de ser. Com este escopo, procurei um objecto cuja intencionalidade pura fosse indubitável e em que pudéssemos estudar as estruturas essenciais e o modo de ser do objecto puramente intencional sem nos submetermos às sugestões resultantes da consideração das objectividades reais. Foi assim que a obra literária se me afigurou ser um objecto de investigação particularmente ade­ quado a este fim. Ao ocupar-me dela mais de perto rasgaram-se-me os problemas específicos da ciência da literatura, e o livro pre­

1 Cf. Festschrift für E. Husserl, pp. 159-190.

5 sente é o resultado do seu estudo relacionado com as tendências fundamentais que acabo de indicar. Porque me deixei guiar na redacção deste livro por motivos tão diversos, diferentes si■ações reais foram mais rigorosamente tratadas do que indispensável num livro que se limitasse a estudar apenas 35 fundamentos filosóficos de uma teoria da obra literária. Por outro lado, foi precisamente a multiplicidade das produções pertencentes à estruturação da obra literária que me levou a uma série de considerações, indispensáveis para este problema especial e ao mesmo tempo importantes para várias disciplinas filosóficas. Assim, as investigações do 5.° capítulo são uma contribuição para a Lógica e a sua nova orientação; as consi­ derações sobre as relações objectivas e as objectividades apre­ sentadas na obra literária procuram desenvolver alguns problemas ontológico-formais, as investigações sobre o modo de ser dos objectos apresentados têm importância para a Ontologia exis­ tencial geral. Para não prejudicar a unidade do livro, evitei discutir as conseqüências muito importantes que derivam dos resultados desta investigação, tanto para o problema Idealismo-Realismo, como ainda no que respeita a outros problemas filo­ sóficos. O presente livro foi escrito durante uma licença concedida para a realização de estudos, nos meses de Inverno de 1927/28. A preparação de outras publicações inadiáveis e as condições muito difíceis do meu trabalho arrastaram, por mais dois anos inteiros, a redacção definitiva do texto a imprimir, verificando-se correspondente atraso na publicação do livro. A conseqüência disto foi a de muitos resultados dos meus estudos terem entre­ tanto sido publicados noutras obras. É este o caso de muitas observações do 5.° capítulo deste livro e da Formale und transzendentale Logik, de Husserl. A afinidade entre algumas das minhas análises e as afirmações do meu venerado mestre cau­ sou-me particular satisfação durahte a leitura da sua obra recente. Ao mesmo tempo, a comparação dos dois textos revelou que, ao lado de pontos de contacto, existem também grandes divergências, e porventura naqueles pontos que para mim são os mais importantes. Assim, foi-me impossível referir esta sua obra apenas pelo acréscimo posterior de uma série de citações. Déixei, pois, imprimir o texto do meu livro sem o modificar e quero indicar aqui apenas os pontos de afinidade e de diver­ gência, esperando poder um dia dedicar uma publicação especial à nova obra tão 'significativa do meu venerado mestre. As minhas afirmações concordam com as de Husserl em Formale und transzendentale Logik ao conceberem os signifi-

6 cados das palavras, as frases e as unidades superiores de sentido como realizações que resultam das operações subjectivas da consciência. Portanto, não são objectividades ideais r\o sentido definido pelo próprio Husserl nas suas Logischen Untersuchungen. Enquanto Husserl conserva o termo ideal na maior parte da sua Lógica, acrescentando só, por vezes, em parêntese a palavra irreal, eu renuncio por completo a esta nomenclatura, pro­ curando opor, nitidamente, aquelas realizações às objectividades ideais no sentido rigoroso. Nisto revela-se a primeira divergência objectiva. Husserl considera actualmente como produtos inten­ cionais de género especial todas as objectividades outrora con­ sideradas como ideais no sentido antigo, chegando, assim, a uma ampliação universal do Idealismo Transcendental, enquanto eu continuo a insistir na rigorosa idealidade de várias objecti­ vidades ideais (dos conceitos ideais, dos objectos individuais ideais, das ideias e das essencialidades) e vejo até nos conceitos ideais um fundamento ôntico das significações das palavras que lhes torna possível a sua identidade intersubjectiva e o seu modo-de-ser ontològicamente heterónomo. Ao mesmo tempo, a nova concepção dos produtos lógicos resulta em Husserl sobre­ tudo das investigações fenomenológicas e dos motivos idealista-transcendentais universais, enquanto as minhas considerações seguem a orientação ontológica, procurando demonstrar nos próprios produtos lógicos uma série de circunstâncias que im­ possibilitam o seu ser ideal no sentido rigoroso e, ao mesmo tempo, indicam como sua origem ôntica as operações subjectivas. Só depois tento acrescentar alguns esboços fenomenológicos correspondentes. Abstenho-me, no meu livro, de todo o juízo a respeito da posição idealista-transcendental e, em particular, da concepção idealista do mundo real. O meu livro contém uma série de resultados isolados que, no caso de serem verdadeiros, serão contrários a esta concepção. Isto diz respeito, p. ex., à singular estrutura dupla das objectividades puramente intencio­ nais, às indeterminações que aparecem nos seus conteúdos e à sua heteronomia ontológica. Quanto a pormenores sobre a aludida afinidade com a Lógica de Husserl, bastará salientar as seguintes observações como afins das correspondentes de Husserl: 1.°, a concepção das operações subjectivas elaboradoras das frases e a distinção entre a pura proposição e o juízo; 2.°, a distinção entre o conteúdo material e formal da significação nominal da palavra e o confronto da plenitude de significação de uma palavra iso­

7 lada com os momentes sintácticos próprios da sua significação na frase; 3.°, a análise da constituição de uma objectividade puramente intencional numa multiplicidade de períodos. Final­ mente, acontece por vezes que onde Husserl se limita a aludir só de passagem a uma afirmação ou a um problema, porque no contexto respectivo não os pode aprofundar, eu, para os fins que tenho em vista, ofereço análises pormenorizadas. Refe­ re-se isto, p. ex., à minha consideração do modo de ser das objectividades apresentadas na obra literária, enquanto Husserl só duas vezes observa que «também as ficções têm o seu modo de ser» (1. c., pp. 149 e 226). Na página 230 da sua obra, Husserl põe o «problema delicado» da possibilidade de «a subjectividade em si mesma criar, únicamente a partir das origens da sua espontaneidade, produtos susceptíveis de passar por objectos ideais de um “ mundo” ideal. E mais (como problema de outra ordem) o do modo detestas idealidades poderem receber exisxència vinculada ao espaço e tempo no mundo da cultura exigido como real enquanto encerrado no universo espaço-temporal, exis­ tência essa na forma da temporalidade histórica, como é o caso das teorias e ciências». Estes «problemas delicados», em particular o segundo, constituíram outrora o ponto de partida da minha reflexão sobre a obra literária. O resultado foi a exclusão destas realizações não só do âmbito das idealidades no sentido rigoroso, mas também do mundo real. Se consegui ou não justificar este resultado, o leitor deste livro poderá julgar por si mesmo. Todas estas observações permitem ao leitor orientar-se com facilidade nas relações que existem entre o meu livro e a Formale and Transzendentale Logik de Husserl. Embora eu tenha de referir alguns pontos de divergência em relação às opiniões do meu venerado mestre, não esqueço quanto lhe devo. Hoje, depois de doze anos de trabalho pessoal, sei, melhor do que nunca, quanto Edmund Husserl, com as suas profundas intuições e o domínio de horizontes ilimitados, a todos nos supera. Se conseguirmos descobrir algo que a Husserl passou despercebido, devemo-lo, sobretudo, às grandes facilidades que o seu trabalho incansável de investigador nos proporcionou. Por fim, não queria deixar de exprimir os meus melhores e mais calorosos agradecimentos a todos aqueles que me auxi­ liaram na preparação do presente livro. Foram, sobretudo, os Professores Julius Kleiner e Zygmunt Lempicki, que me ajudaram com os seus conselhos preciosos e crítica. Alguns capítulos ¿iscuti-os com o Dr. W. Auerbach (que também me ajudou na

8 revisão das provas tipográficas) e com a Dr.a M. Kokoszynska e fico-lhes muito grato por muitas observações acertadas. A Dr.a Edith Stein teve a amabilidade de se encarregar do grande trabalho da correcção lingüística do texto, prestando-me, assim, um precioso serviço de amizade. Os meus especiais agradecimentos vão para Max Niemeyer, que, apesar da crise geral, resolveu publicar o meu livro na sua Casa Editora, empenhando-se em lhe dar a melhor apre­ sentação possível.

Lemberg, Outubro de 1930. O A utor

Prefácio da terceira edição

A nova edição do presente livro aparece quando o seu Apêndice original, agora intitulado Investigações acerca da Onto'.:zia da Arte, já tinha sido publicado em língua alemã. Só agora 5-c torna evidente que as reflexões consagradas à obra literária, ¿esde o princípio, constituíam simplesmente parte de uma pro­ blemática mais vasta e foram conduzidas segundo uma intenção :eórica mais extensa. Abstraindo da relação com o problema Idealismo-Realismo, que talvez se torne nítida depois da publi­ cação do meu livro Der S treit■um die Existenz der Welt («A dis­ cussão acerca da existência do mundo»), está claro agora que eu, desde o princípio, pretendi criar, pela análise profunda da estrutura e do modo de ser das obras das diferentes artes, uma base mais concreta para a Estética fenomenológica do que a vigente até então. Andava aliada a este propósito a exigência metodológica de que a ciência da literatura e toda a investigação estética deviam concentrar as suas análises nas próprias obras de a rte 1 e todos os problemas a elas concernentes só nesta base poderiam ser tratados2. É certo que os dois livros men­ cionados constituem somente a parte principal das minhas publicações em língua polaca. Espero, porém, oferecer ao público alemão pelo menos o meu livro Vom Erkennen des literarischen Kunstwerkes («D o conhecimento da obra de arte literária») e uma colectânea das minhas conferências em versão alemã. Então começarão a delinear-se os contornos de uma Estética fenomenològicamente tratada, como eu a entendo.

1 A isto René Wellek chamou mais tarde «o método literário-imanente ¿a ciência da literatura». 2 Em 1931, fui por isso alvo de ataques vindos de todos os lados, pelo menos na Polônia. Ficaria satisfeito se esta exigência metodológica fosse hoje considerada trivial.

10 nem tão-pouco ultrapassadas pelos resultados contidos em outros livros e tratados, de modo a perderem hoje o seu significado. Pelo contrário, creio que este meu livro oferece resultados que excedem quanto outros realizaram neste campo. Oxalá que a situação destas investigações tenha evoluído favoràvelmente a este livro e talvez as reflexões nele contidas se tornem hoje mais acessíveis ao leitor do que o foram no princípio do quarto decênio deste século. Assim deposito este livro nas mãos do público, esperando que continue a provar a sua utilidade. Deixei a obra inalterada na sua essência. Apenas nalguns passos tentei adaptar as formulações anteriores com mais pre­ cisão aos factos dados. Por vezes completei o texto com uma ou outra observação. Tenho plena consciência de que este livro seria muito mais acessível e plástico para os investigadores da literatura se eu oferecesse uma série de análises concretas das obras de arte individuais. Contudo, já na primeira redacção tive de renunciar a elas, porque de outro modo o livro ficaria demasiado extenso. Além disto, receei analisar obras de arte concebidas numa língua que me é estranha, porque neste caso fácilmente se é levado a interpretações erradas. Por essas mesmas razões desisti também agora da análise de obras de arte indi­ viduais. Em contrapartida, inseri em vários passos novas refe­ rências literárias e citei as opiniões alheias que pareciam con­ firmar a minha posição em vários problemas particulares. Foram particularmente valiosas para mim as confirmações oriundas de autores que era óbvio não conhecerem o meu livro. Em alguns passos respondi às objecções que me foram feitas no decurso dos anos. Infelizmente, a literatura mais recente só parcialmente foi tomada em consideração, e eu apenas pude obter uma parte reduzida das respectivas publicações. Por fim, não quero deixar de apresentar os meus melhores agradecimentos ao meu fiel editor, Dr. Hermann Niemeyer, em Tubingen, por se propor reeditar este livro.

Cracovia, 1959. O A utor

Prefácio

As investigações trazidas a público nesta obra têm por tema principal a estrutura fundamental e o modo de ser da obra !::erária e, muito especialmente, da obra de arte literária. Desta pretendem sobretudo focar a estrutura característica e eliminar ¿ 3. sua concepção as várias confusões que em obras antecedentes resultaram, por um lado, das tendências psicologísticas, que continuam a ser fortes, e, por outro lado, das considerações de uma teoria geral da arte e da obra de arte. Das primeiras, trato mais pormenorizadamente na primeira parte do presente livro, permitindo-me aqui remeter o leitor para ela. Quanto à teoria zeral da arte, oscilou-se, desde os tempos de Lessing, entre duas concepções antagónicas. Ou aproximou-se demasiado das «artes plásticas» (em primeiro lugar da pintura) a obra literária, e particularmente a obra de arte literária, ou pretendeu-se 1 — se­ guindo o primeiro impulso de Lessing— , como, por ex., Th. A. Meyer, acentuar em demasia o elemento puramente lingüístico da obra literária, negando assim os elementos plásticos da obra de arte literária. Estes dois extremos, a meu ver, resultaram do íacto de se considerar a obra literária sempre como uma reali­ zação unistratificada, enquanto, na realidade, ela é constituída por vários estratos heterogéneos, e de se terem em conta apenas alguns elementos, e sempre diferentes nas diversas teorias, como unicamente constitutivos. Visto que as minhas considerações procuram pôr em relevo a estrutura multistratificada e a poli­ fonia, com ela relacionada, como essenciais à obra literária, na intenção de visar todos os elementos nela existentes, a minha

1 Sobre a história do problema, cf., entre outros, Jonas Cohn, na Zeitschrift für Aesthetik und Allgemeine Kunstwissenschaft, 1907, n.° 3; além disto, R. Lehmann, Deutsche Poetik, § 8.°.

12 Fora originalmente meu propósito fazer a crítica, nesta nova edição, de algumas teorias apresentadas nos últimos anos. Como, porém, esta edição é uma reimpressão fotomecánica, devo desistir dessa intenção e limitar-me a fazer aqui algumas observações sobre a Teoria da Literatura de René Wellek e Austin Warren, referindo aqueles passos em que René Wellek expressa­ mente menciona o meu liv r o 3. Há apenas dois passos (a pp. 169 e 175) em que o meu nome aparece no texto da Teoria da Literatura4. O primeiro destes passos refere-se à minha concepção de estratificação da obra de arte literária, não indo além, no fundo, de uma enume­ ração destes estratos. Afirma-se, porém, que eu distingo cinco estratos, e, entre eles, o das qualidades metafísicas. Isto é um erro. É certo que eu tive em conta, entre outras, as qualidades metafísicas, mas nunca as considerei um dos estratos da obra literária. Seria, pois, inteiramente errado se o fizesse. Só rara­ mente aparecem em certos acontecimentos e situações da vida dentro do mundo apresentado. Se constituíssem um estrato da obra deviam pertencer à estrutura fundamental da obra de arte literária e aparecer, como tais, em todas as obras deste género. Não é este, de modo algum, o caso, o que aliás Wellek também nota. Apesar disto, a sua função na obra de arte é muito importante. Estão intimamente relacionadas com o seu valor estético, e foi precisamente esta a razão por que eu tratei das qualidades metafísicas5. Podem também aparecer em obras de outras artes, sobretudo de Música, Pintura, Arquitectura, etc. Nestes casos podem frequentemente depender do modo como eu concebi a «ideia» de obra. A existência de qualidades meta­ físicas não está, portanto, de modo algum ligada ao carácter literário da obra. Se fossem consideradas estrato da obra de arte literária, passariam despercebidas a feição «anatómica» e a

3 A Teoria da Literatura apareceu primeiro em inglês no ano de 1942, portanto numa época em que a Polônia se encontrava ocupada por tropas estrangeiras, ficando nós, durante muitos anos, excluídos da vida científica do mundo. Nessa altura o meu livro estava quase esgotado e dificilmente se podia obter nos E. U. A. É certo que a tradução alemã da Teoria da Literatura apareceu em 1959, mas eu só o soube muitos anos depois da publicação da 2.a edição do meu livro. 4 Nas anotações e na bibliografia, o título do meu livro é várias vezes indicado. O leitor que não conhece o meu livro não pode, porém, depreen­ der daí em que medida o livro de René Wellek segue de perto as minhas posições. 5 Isto já é um indício de que se não justifica a crítica de Wellek que discutirei mais adiante.

13 função estrutural dos estratos na obra de ârte literária e na obra de arte em geral. A minha concepção dos estratos foi descrita por R. Wellek sob o aspecto, para mim estranho e equívoco, de «norma» e de «sistema de norm as»6. Além disto, Wellek omite por completo a segunda particularidade estrutural da obra de arte literária — a seqüência das partes. Isto significa uma deturpação essencial lanto da estrutura da obra literária, como ainda da minha concepção. A omissão da ordem de seqüência das partes da obra torna impossível a Wellek tratar de problemas importantes da arte literária. A páginas 175 e seg., R. Wellek critica-me da seguinte ma­ neira: «Não nos ocupámos da questão dos valores artísticos. Mas o exame precedente deverá ter revelado que não existe estrutura fora das normas e dos valores7. É-nos impossível compreender e analisar qilalquer obra de arte sem referência a valores. O próprio facto de uma pessoa reconhecer certa estrutura como «obra de arte» implica um juízo de valor. O erro da Fenomenología pura reside na presunção de que tal disso­ ciação (!R. J.) é possível, de que a valores estão sobrepostas estruturas e lhes são de qualquer forma «aderentes». Este erro de análise diminui infelizmente o valor do penetrante livro de Román Ingarden, que tenta analisar a obra de arte sem a referir a valores 8. A raiz da questão encontra-se naturalmente na acei­ tação, por parte dos fenomenólogos, de uma obra eterna, intem­ poral, de «essências» a que apenas mais tarde (!R. J.) se adicionam as individualizações empíricas.» A isto devo responder: 1.° É-me inteiramente desconhecido e pessoalmente também completamente estranho que os «puros fenomenólogos» suponham haver «estruturas sobrepostas» aos valores e a estes de qualquer modo «aderentes». É certo que a palavra «estrutura» é tão polivalente 9 em R. Wellek que esta frase mal se entende. Seja, porém, qual for a acepção das palavras «valor» e «estrutura»,

6 Ocupar-me-ei disto noutro lugar. 7 Se esta afirmação disser respeito à parte precedente do capítulo x n da Teqria da Literatura, a verdade é que a análise de modo algum trata da relação entre as normas, valores e estruturas. No fundo, refere-se às "ünhas considerações acerca da natureza e do modo de ser da obra de arte literária, sem mencionar, no texto, o meu nome. Só na página 169 há um resumo da minha concepção dos estratos. 8 Esta sentença de R. Wellek foi muitas vezes repetida por outros autores, sem verificarem a sua veracidade. Por isso refiro-a aqui. 9 Demonstrá-lo-ei noutro lugar.

14 o verbo «sobrepor» sugere que o que está na base seria o «valor» e o que sobre ele se ergue seria precisamente umá «estrutura». É exactamente o contrário daquilo que eu afirmei. Por outras palavras: as estruturas (e nem todas, mas estruturas muito especiais) são o que está na base; o fundamento e os valores são precisamente o fundamentado. 2.° Max Scheler falou, com efeito, de valores como objectos ideais ou essencialidades, mas distinguiu deles os «bens» que são individuais e de modo especial reais, e cujos momentos valiosos são igualmente individuais. Nenhum fenomenólogo afir­ maria, porém, que a estas «essencialidades» apenas mais tarde se acrescentariam as «individualidades empíricas». 3.° São duas coisas distintas — o que R. Wellek não toma em consideração: analisar uma obra de arte individual, como, p. ex., o Fausto de Goethe, e construir uma teoria filosófica universal da obra literária. No primeiro caso, seria errado con­ siderar determinada obra de arte individual totalmente «sem referência» — no dizer de R. Wellek — ao seu valor artístico, embora ainda neste caso deva haver fases da investigação, em que os momentos axiològicamente neutros da obra de arte são visados, sem se atender, então, ao seu valor. No segundo caso, porém, em que a investigação é realizada com base numa análise do conteúdo da ideia universal da obra de arte, não devemos esquecer que as obras de arte são artística ou estéticamente valiosas, ou devem encarnar em si um valor, mas o valor determinado que uma obra de arte tem eventualmente, ou pode ter, deve ficar fora da nossa consideração precisamente porque esta particularidade do valor constitui uma variáv.el no conteúdo da ideia universal de obra de arte. Só os casos singulares destas variáveis podem aparecer nas obras de arte individuais. É com­ pletamente impossível proceder de outra maneira. E o próprio R. Wellek não procede de outro modo — apesar da crítica que me dirige. Diz ele expressamente — e inteiramente no meu sen­ tido e seguindo ainda o meu exemplo — a páginas 26 e seg. do seu livro: «Esta concepção de literatura é descritiva e não valorativa. Não se cometerá qualquer injustiça para com uma obra de grande fôlego e influência pelo mero facto de a rele­ garmos para o campo da retórica ou da filosofia ou do panfletarismo político, porque em todos estes campos se podem pôr problemas de análise estética e de estilística, mas falta-lhes pre­ cisamente a característica principal da literatura, isto é, a especial relação à realidade, que é a «ficção». Esta concepção de lite­ ratura incluiria assim todas as espécies de ficção, ainda que se tratasse do pior romance do pior poema, do pior drama.

15 Segundo ela, a classificação de obras de arte deveria constituir questão distinta da valoração.» É precisamente esta a minha opinião. Merece também aten­ ção o facto de, segundo R. Wellek, a literatura não se distinguir de outras obras pelo seu valor mas — na afirmação de Wellek — pela sua «relação particular com a realidade». Corresponde isto, igualmente, à minha opinião. Nesta formulação vaga, a afirma­ ção aliás já não é nova. Na Alemanha, remonta pelo menos a Lessing. Por isso tentei dar um passo importante em frente nesta questão procurando definir um pouco mais exactamente aquela «ficção», indicando ao mesmo tempo os quase-juízos que são o seu meio de produção. 4.° Finalmente, nem tentei nem exigi «a análise da obra de arte sem referência a valores». Textualmente escrevo (p. 38): quando se trata do valor artístico de um filme ele depende, em primeirõ; lugar, da selecção dos aspectos reconstruídos, das suas quali­ dades decorativas e outras estéticamente relevantes e só em

357 segundo lugar de momentos correspondentes das objectividades apresentadas K Não se deve, porém, ir longe de mais neste sentido e con­ siderar o estrato das objectividades apresentadas como inteira­ mente irrelevante ou até mesmo supérfluo pois não se deve esquecer que pertence à essência de um aspecto ser aspecto de alguma coisa. A ideia de um espectáculo cinematográfico «abstracto» — como Irzykowski lhe chama— , i. é, de um espec­ táculo a que faltasse simplesmente o estrato dos objectos apre­ sentados e levados a aparecer (coisas, pessoas, eventos), poder ser técnicamente realizável não constitui, porém, uma mera modificação do espectáculo cinematográfico mas sim um tipo de obras totalmente heterogéneo em confronto com este, não obstante poder ser realizado com os mesmos aparelhos2. Se se admite que ambos os estratos são indispensáveis numa obra cinematográfica também se tem de admitir juntamente com isto que nela existe igualmente uma polifonia de elementos hetero­ géneos e de qualidades de valor correspondentes mesmo que ela seja aqui essencialmente mais pobre e simples do que o é numa obra puramente literária. Com isto não está em contra­ dição o facto de o espectador vulgar e ingênuo vir quase exclu­ sivamente preparado para os acontecimentos e coisas que se fazem aparecer. Em conclusão: a obra cinematográfica não é uma obrcí literária. É-lhe, porém, afim porque nela as mesmas objectivi­ dades, em princípio, podem fazer a sua apresentação (com as limitações acima indicadas) e uma vez que possui, afinal, o estrato das objectividades apresentadas. No caso de ser uma obra de arte está muito mais perto das obras de arte literária do que, p. ex., as obras da música e da arquitectura e também mais perto do que as obras da pintura e da escultura. É — se assim se pode dizer— uma peça de teatro degenerada que, por um lado, como que perdeu os dois estratos de linguagem mas, por outro, em vez de empregar objectividades reais na função

' Ter chamado a atenção para isto é o principal mérito de Irzykowski no livro citado, embora o conceito de aspecto lhe seja desconhecido. 2 É de notar que a posição de Irzykowski neste ponto é vacilante. Por um lado, insurge-se contra a eliminação do conteúdo («Gehalt» na sua ter­ minologia), i. c, segundo os seus conceitos que definimos, do estrato das objectividades apresentadas; por outro lado, fala da ideia de um cinema «abstracto» com evidente simpatia sem tomar consciência da heterogenei­ dade das duas espécies de «espectáculos» cinematográficos.

358 de reprodução utiliza exclusivamente aspectos reconstruidos e, sob muitos pontos de vista, radicalmente alterados como meios de apresentação. Como a obra literária, também o espectáculo cinematográ­ fico pode ser uma obra de arte ou apenas uma obra de infor­ mação ou uma exposição científica (Cf., p. ex., o estudo das fases do voo das aves, fotografias para a psicologia, emprego do cinematógrafo na biologia, medicina, etc.) Neste aspecto manifesta-se uma nova afinidade entre o espectáculo cinemato­ gráfico e as obras literárias. No caso de ser uma obra de arte então as objectividades apresentadas aparecem não como reais mas só como quàse-reais, surgindo apenas sob a aparência de realidade. São, além disso, apenas objectividades puramente intencionais e a sua pura intencionalidade é ainda corroborada pelo facto de as «imagens» projectadas não serem objectos reais, autónomos no seu ser, mas imagens somente que têm de ser interpretadas pelas operações subjectivas correspondentes como aparições das objectividades apresentadas. Quanto à inten­ cionalidade das objectividades apresentadas em nada as altera o facto de ser de coisas, homens, acontecimentos reais de que ao produzir o filme se fazem fotografias. Efectivamente, os objectos a que se tiram fotografias não são, por assim dizer, simples objectos reais. Eles exercem aqui uma função de repro­ dução e de representação, desempenham um «papel». E não são os objectos reais como reais mas sim o que é por eles repro­ duzido, ou melhor, representado que pertence (depois de tirada a fotografia e feita a projecção) como estrato à estrutura da obra cinematográfica. Completamente diferente é o que se passa, pelo contrário, no caso de um filme científico ou de um filme de informação (o documentário da semana). Aqui, as coisas reais que são reproduzidas cinematográficamente não desempe­ nham «papel» algum. Elas são fotografadas no seu simples ser e modo de ser. É a elas próprias que por quaisquer motivos nós queremos apreender no seu modo de ser e acontecer por esta via intermediária. Em compensação, as objectividades pura­ mente intencionais que aparecem através dos aspectos recons­ truídos cinematográficamente exercem actualmente a função de

1 A designação «obra literária» é tomada aqui num sentido mais lato do que o que foi empregado até aqui a propósito desta expressão. Cf. a este respeito o § 60.

359 reprodução e representação com o fim de trazerem os objectos e acontecimentos já fotografados a uma doação quase em moldes de percepção 1.

§ 59. A pantomima Um caso limite entre a peça de teatro e o espectáculo cinematográfico é constituído pela pantomima. Ela tem afini­ dades com a primeira pela razão de nela — como na peça de teatro— estarem compreendidas objectividades reais na função de reprodução e representação que predeterminam multiplici­ dades de aspectos inteiramente concretos. Com o espectáculo cinematográfico tem, porém, de comum o facto de também nela faltar o duplo estrato da linguagem e de, portanto, também nela como na obra de cinema existir uma análoga limitação da apresentabilidade. Distingue-se, contudo, ao mesmo tempo desta última pela razão de nela tanto os aspectos como os movimentos e modos de comportamento dos actores «em cena» se constituírem de maneira que o elemento da linguagem, que neste caso falta, é substituído por outros meios. Ela está, por assim dizer, planeada no sentido de através do jogo fisionômico e da gesticulação das personagens que surgem em cena se dizer exactamente o mesmo que poderia de modo mais simples ser expresso através das palavras. É quase como uma peça teatral de surdos-mudos. Isto é precisamente o que não se dá no caso de um espectáculo cinematográfico. Eis porque os limites da apresentação na pantomima são muito mais restritos do que na obra de cinema uma vez que nela não se têm ao dispor meios técnicos convenientemente eficientes.

1 É claro que na base dos argumentos deste parágrafo está uma con­ cepção muito especial da estrutura da fotografia que se vislumbra através do texto. Essa concepção era em 1930, ano em que surgiu este livro, com­ pletamente nova. Desde então foi publicada uma série de estudos sobre a fotografia em língua alemã, francesa e inglesa — de N. Hartmann, 1932, até porventura E. Gilson, 1958 — , os quais apresentam muitas afinidades com a concepção de fotografia aqui adoptada e quase na mesma altura elaborada. O texto integral do meu trabalho escrito em língua polaca (O budowie obrazu, 1946) era, com efeito, inacessível aos investigadores da Europa ocidental, mas um resumo em francês do mesmo surgiu no «Boletim » da Academia Polaca das Ciências em Í946. Em que medida a este respeito se pode falar de uma simples afinidade ou de influência ■não me é possível dizê-lo.

360 O que acabámos de dizer permite-nos verificar que no caso da pantomima há apenas uma afinidade com a obra literária sem que ela possa propriamente ser incluída neste género de obras. Não é possível entrarmos aqui em problemas especiais

§ 60. A obra científica A simples informação Um caso limite muito importante da obra literária é cons­ tituído pela obra científica. Ela distingue-se sob vários pontos de vista da obra de arte literária embora lhe esteja relativamente muito próxima. Denota unja estruturação em estratos inteira­ mente análoga à da obra literária; não obstante, os elementos de cada um dos estratos singulares assim como os papéis res­ pectivos são nela em parte diferentes. Todas estas diferenças estão em íntima relação com a função de natureza distinta que a obra científica desempenha na vida espiritual do homem. Consiste ela na fixação dos resultados de conhecimento adqui­ ridos e na sua transmissão a outros sujeitos conscientes. É esta função precisamente que a obra literária, no sentido em que a tomamos, não poderá exercer. As diferenças entre os dois tipos de obras que entram aqui antes de mais em consideração são as seguintes: 1. As. frases que aparecem numa obra científica são quase exclusivamente autênticos juízos. Elas podem ser verdadeiras ou falsas mas reivindicam, em todo o caso, essencialmente a pre­ tensão de verdade. Eis porque desaparece aqui tanto a modi­ ficação quase-judicativa das frases afirmativas como também a modificação análoga de todas as restantes que nós julgámos características da obra literária. Mesmo quando por acaso surge uma interrogação meramente «retórica», que, como tal, em princípio poderia ser substituída por uma frase afirmativa, essa interrogação reivindica em todo o caso a pretensão a ser uma interrogação verdadeira.

1 Abstraímos aqui da complicação que resulta da freqüente combi­ nação da pantomima com o «acompanhamento» musical (designação aliás incorrecta pois o que está aqui em jogo é algo mais do que um simples acompanhamento). A presença do elemento musical não é essencial para a pantomima. No caso, porém, de ele intervir surge, então, um novo tipo de obra de arte que não vamos aqui analisar em pormenor. Sem dúvida, com o contributo do elemento musical alargam-se os limites da apresentação.

361 2. À estrutura da obra científica pertencem, naturalmente, tanto os correlatos de frases puramente intencionais (e quase exclusivamente relações objectivas) como as objectividades apre­ sentadas. Uma vez que as frases aqui são predominantemente juízos autênticos é através do conteúdo do correlato puramente intencional da frase que passa o raio director das significações nelas contidas, de modo que as frases se referem a comporta­ mentos de coisas objectivamente existentes ou aos objectos neles abrangidos. As relações objectivas puramente intencionais são em princípio «transparentes» e só se distinguem dos compor­ tamentos de coisas objectivamente existentes quando se trata de frases erradas ou pelo menos duvidosas e até mesmo quando os respectivos comportamentos de coisas objectivamente exis­ tentes não foram ainda apreendidos ]. Seria um erro pensar que as objectividades apresentadas na obra científica desempenham uma função de reprodução e que é só por esta função que as frases entram em relação com as objectividades ontològicamente autónomas reproduzidas. Pode dar-se isto, é certo, não quando a obra científica está a desempenhar a sua função própria mas apenas numa configuração especial que lhe é imposta quando é captada como uma «concepção» do autor em causa, tal como muitas vezes acontece, p. ex., no caso de uma análise histórica de obras filosóficas. Só então exercem as objectividades apre­ sentadas as funções de reprodução e de representação e a obra na sua totalidade aproxima-se, sob este ponto de vista, de muitas obras literárias. 3. Numa obra científica podem aparecer tanto no estrato das formações fónico-linguísticas como no das unidades de significação particularidades que vistas em si mesmas encerram qualidades de valor estético e em conjunto com momentos cor­ respondentes de outros estratos levam a uma polifonia valio­ samente qualitativa. Mas se isto não é excluído pela essência da obra científica, por outro lado não lhe é de modo algum necessário; constitui para a obra científica um luxo dispensável. A obra científica não está de modo algum concebida para conter tais peculiaridades. Está planeada no sentido de, em

1 Sabemos muitas vezes que uma frase é errada e, apesar disso, não somos capazes de apreender o comportamento objectivo das coisas que pertence à frase verdadeira correspondente e fica por conhecer. Todavia, como «desconhecido» já se distingue da relação objectiva puramente inten­ cional da frase errada. Naturalmente, o comportamento não-conhecido das coisas tem de estar já de qualquer modo unívocamente determinado se tem de ser apreendido como «não-conhecido».

362 primeiro lugar, conter frases verdadeiras e encerrar particula­ ridades estruturais que lhe possibilitem a acção na função me­ diadora do conhecimento. Tudo o resto tem de ser subordinado a este objectivo principal. Eis o que, precisamente, não só não é essencial para a obra literária e em especial para a obra de arte literária mas está até excluído no caso de autênticas obras de arte'. Em que consistem na estrutura da obra as particula­ ridades que daí resultam e de que modo a fazem distinguir da obra de arte literária, este seria um tema para uma análise especial de grande amplitude. 4. As obras científicas podem conter em si, como um estrato especial, multiplicidades de aspectos esquematizados postos à disposição caso precisamente as frases se relacionem com objec­ tos capazes de aparecer em multiplicidades de aspectos. Mas se estes aspectos estão presentes na obra não deixam, no entanto, de desempenhar nela um papel completamente diferente do desempenhado na obra de arte literária. Interessam simplesmente como meios auxiliares úteis e muitas vezes até indispensáveis à transmissão dos resultados de conhecimento. Os momentos decorativos eventualmente presentes são nela inteiramente dis­ pensáveis e muitas vezes até perturbadores. 5. Finalmente, a revelação eventualmente ocorrente das qua­ lidades metafísicas só é essencial quando uma determinada qualidade metafísica em si mesma pertence ao tema do resultado do conhecimento adquirido e transmitido ou pelo menos o auxilia na sua transmissão. Em todos os outros casos a sua revelação não só não é essencial mas pode até actuar contràriamente à função capital da obra científica e deve, portanto, evitar-se o mais possível. Mutatis mutandis, também o que dissemos poderá ser exten­ sivo ao caso da simples informação, i. é, da pura reportagem. Não pretendemos ocupar-nos deste assunto com mais pormenores.

Capítulo 13

A «vida» da obra literaria § 61. Introdução

As nossas análises foram até agora orientadas no sentido de encarar a obra literária como urna objectividade em si e de a procurar perscrutar na sua construção peculiar. Isolámo-la da sua relação viva com os individuos psíquicos e, por conse­ qüência, também da atmosfera cultural e das diferentes correntes espirituais que se desenvolvem no decorrer da historia. Só nos pontos em que a própria obra literária remete para operações subjectivas tivemos de recorrer aos elementos sub­ jectivos. Chegou agora a ocasião de voltarmos a pôr a obra, por assim dizer, de novo em contacto com o leitor e de a situar na vida espiritual e cultural concreta a fim de verificarmos que novas situações e problemas daí resultam. Isto torna-se também necessário porque as nossas observações nos levaram à conclusão de que a obra puramente literária é, sob vários pontos de vista, uma formação esquemática que inclui em si «lacunas», pontos de indeterminação, aspectos esquematizados, etc. Por outro lado, muitos dos seus elementos evidenciam uma determinada poten­ cialidade que nós procurámos indicar com a expressão «estado de disponibilidade». Contudo, a obra literária singular não parece revelar 1 na relação viva com o leitor no decorrer de uma leitura tais pontos de indeterminação, tais esquematizações, nem a potencialidade dos aspectos postos à disposição. A partir daqui põe-se a pergunta pelo modo como se apresenta a obra literária durante uma leitura e qual é o correlato imediato desta leitura. Já anteriormente tivemos a oportunidade de aludir a que à

1 Esta potencialidade, porém, também se revela — como é de com­ pletar aq u i— no modo de parecer dos objectos apresentados. Este modo de parecer só seria efectivamente acabado se os aspectos do seu simples estado de disponibilidade e esquematização pudessem passar à actualidade e concreção. Mas isto só é possível aquando de uma concretização da obra.

¿64 própria obra são de contrapor as suas concretizações, que sob muitos pontos de vista dela se distinguem. Estas concretizações são precisamente aquilo que se constitui durante uma leitura e o que, por assim dizer, produz um modo de aparecimento da obra na concretização em que nós a apreendemos. A próxima tarefa que se nos impõe aqui consistirá em circunscrever as particularidades da concretização da obra literária e estudar as relações que existem, por um lado, entre as concretizações e a obra literária e', por outro, entre elas e as vivências subjectivas em que se constituem \

§ 62. As concretizações da obra literária e as vivências da sua apreensão O que temos nós em vista quando falamos da «concreti­ zação» de uma obra literária? Em vez de respondermos direc­ tamente a esta pergunta queremos, em primeiro lugar, delimitar esta concretização em relação às operações subjectivas e, ‘ mais em geral, em relação às vivências psíquicas que temos durante uma leitura. A obra literária com que temos de lidar, quer ao ler, ao ouvir, quer ainda durante uma representação teatral é — de acordo com as nossas análises anteriores — um objecto de construção muito complexa em função do qual nos orientamos numa multiplicidade de actos de consciência conexos entre si e de outras vivências que já não têm a estrutura especial do acto. Precisamente a complexidade da sua construção e a heterogeneidade dos seus elementos fazem que todas estas vivências e actos sejam de natureza muito variada e se produzam em diferentes combinações possíveis e entrelaçamentos. Há, em pri­ meiro lugar, diversos actos de conhecimento tais como os actos de percepção em que os signos de palavras ou fonemas e as formações fónico-linguísticas de ordem superior são apreendidos (ou as percepções das coisas e pessoas2 que se encontram «no palco»), os actos de apreensão das significações fundados nos

1 É a «concretização» da obra que W. Conrad tem em vista quando fala da «realização» da obra de arte. Não leva, porém, mais longe a análise desta «realização» (cf. I. c., p. 480). 2 Em rigor, não são simples percepções sensíveis; levar-nos-ia, porém, demasiado longe tratar disto com maior pormenor. Este assunto não é de grande significado para o que se segue.

365 primeiros e, finalmente, os actos de intuição imaginativa das objectividades e situações apresentadas e, dado o caso, também das qualidades metafísicas que nestes se revelam. Esta intuição da imaginação está, por seu lado, fundada nos actos primeira­ mente indicados. Tanto nos actos de percepção em que apreen­ demos o estrato fónico-Iinguístico (ou em que nós, numa repre­ sentação teatral, levamos à cena os objectos representantes) como também na intuição imaginativa das objectividades apre­ sentadas são, ao mesmo tempo, vividas multiplicidades de aspec­ tos concretos quer na forma da modificação ao nível da per­ cepção, quer ao nível da fantasia. Precisamente, quando o leitor se submete à obra são vividos aqueles aspectos cujos esquemas são postos à disposição pela mesma. Além disso, são despertadas 1 no leitor múltiplas vivências do prazer estético em que despon­ tam avaliações estéticas que eventualmente também atingem um desenvolvimento explícito. Finalmente, fazem-se sentir na alma do leitor (ou do espectador) sob o efeito da leitura múltiplos sentimentos e afectos2 que, é certo, já não pertencem ao grupo das vivências em que a obra literária é apreendida in concreto mas não deixam de ter influência na sua apreensão. Como vemos, a situação que encontramos no sujeito psí­ quico durante uma leitura é muito complicada e seria necessária uma análise3 especial para a discriminar com mais exactidão. A complexidade e multiplicidade desta situação é — como já observámos — apenas um reflexo da estruturação da obra lite­ rária. Esta estruturação exige em certa medida que a não apreendamos em vivências globais simples ou construídas sim­ plesmente, mas devemos desenvolver uma grande riqueza de variados actos de consciência e vivências a fim de a captarmos adequadamente. A complexidade da apreensão total da obra tem como conseqüência que o «eu», sujeito de vivêiteias, deva, por assim dizer, produzir demasiado de urna só vez, não podendo portanto viver em todos os componentes desta apreensão total no mesmo sentido. De‘ toda a multiplicidade dos actos ao mesmo tempo vividos e entrelaçados uns nos outros e das outras vivên­

1 Cf. as belas análises de M. Geiger no trabalho B eitráge zu r Phánom e­ nologie des dsthetischen Genusses, Jahrbuch für Philosophie und phânom. Forsch., vol. I. 2 Cf. M ax Scheler, Z u m Phanom en des Tragischen. 3 N o meu livro Ü ber das E rken n en des litera risch en Kunstw erks (1937) submeti todos estes dados a uma análise pormenorizada.

366 cias são efectuados sempre só alguns pelo «eu» fulcralmente e em plena actividade, enquanto os restantes são, é certo, também vividos e realizados mas apenas no modo da «co-efectivação» e co-experiência. Dá-se neste processo uma constante mudança com respeito à espécie de actos (vivências) componentes que num dado momento se desenvolvem fulcralmente ou apenas «de passagem» na co-realização. Com esta mudança vai de par tam­ bém a mudança do raio de incidência da atenção. Em conse­ qüência disto, partes e estratos sempre diferentes da obra lida são intuídos de forma mais clara, enquanto os restantes mer­ gulham numa penumbra e numa seminebulosidade em que ape­ nas ressoam e têm voz dando coloração de modo especial à totalidade da obra. Uma outra conseqüência desta mudança constante e dos modos diferentes em que nós experimentamos ora estas vivências ora aquelas é que a obra literária nunca é apreendida plenamente em todos os seus estratos e compo­ nentes mas sempre só parcialmente, sempre, por assim dizer, apenas numa abreviação perspectivista. Estas abreviações podem mudar constantemente não só de caso para caso mas também numa e a mesma leitura pois elas podem até ser condicionadas e exigidas pela estruturação da obra em causa e de todas as suas partes singulares. Em geral não são, porém, tão depen­ dentes da própria obra como das condições particulares em que a leitura se realiza. Eis porque apenas podemos captar uma obra só até certo grau, nunca, porém, plena e inteiramente. Quase somos tentados a dizer que uma e a mesma obra se apreende em «aspectos» 1 diferentes e em mutação. A multipli­ cidade variada destes «aspectos» que pertencem a uma e a mesma leitura é, ao mesmo tempo, de significação decisiva para a constituição de uma determinada concretização da obra que em dado momento se lê. E uma vez que estas multiplicidades, no caso de duas leituras diferentes, são em geral diversas depara-se-nos assim o caminho para distinguirmos a obra das suas próprias concretizações. Em primeiro lugar, porém, ainda uma observação que não deixa de ter importância: a riqueza e a complexidade das ope­ rações subjectivas e vivências a realizar na apreensão da obra literária exigem que o sujeito que apreende, caso a leitura e a apreensão da obra pretendam afinal ser bem sucedidas, afaste

1 É o que diz também W. Conrad, sem aliás chamar a atenção para as situações aqui apresentadas (l. c.).

367 de si todas as influências perturbartoras. Eis porque se dá geral­ mente um involuntário afastamento e repressão de todas aque­ las vivências e estados psíquicos que são próprios da vida, aliás real, do leitor em causa-, um cegar e ensurdecer para os factos e acontecimentos do mundo real. Procuramos afastar de nós durante a leitura até acontecimentos e assuntos sem a mínima importância como possíveis estorvos (daqui a posição o mais cómoda possível do nosso corpo, o maior silêncio possível e outras coisas semelhantes). Este afastamento do nosso mundo real leva, por um lado, a que as objectividades apresentadas e intuídas constituam para nós um mundo próprio que se encontra longe de qualquer realidade e, por outro lado, torna-nos possível a atitude de pura intuição frente às objectividades apresentadas e o gozo pleno das qualidades de valor estético que se revelam na obra. Por esse afastamento, entre outras coisas, adquirimos a atitude «estética» («intuitiva») específica em que em geral as obras de arte podem ser apreendidas e se tornam possíveis relações vivas com elas !. É, pois, em última análise essa mesma riqueza de vivências da apreensão que, por um lado, contribui para as «abreviações perspectivistas» da obra literária numa leitura e por estas também, possivelmente, para uma turvação da pureza da sua forma global mas, por outro lado, contribui precisamente para a intuição que lhe é adequada enquanto obra de arte. Todos estes actos de apreensão e vivências constituem, naturalmente, a condição necessária para que uma obra literária seja apreendida a vivo na forma de uma das suas concretizações possíveis. Apesar disto, não só a própria obra literária mas também cada uma das suas concretizações são diferentes destas vivências da apreensão. É natural que não haveria nenhuma concretização se as vivências de apreensão não se realizassem pois as concretizações são dependentes destas últimas tanto no seu modo de ser como também na sua matéria. Contudo, con­ cluir daqui que elas são algo de psíquico ou mesmo um ele­ mento das vivências está desprovido de qualquer fundamento. Como se duas objectividades A e B que são dependentes onto­ lògicamente uma da outra tivessem sempre, por isso mesmo, de ser da mesma espécie ou estar na relação parte-todo! Entre uma cor concreta e a sua extensão concreta existe uma relação

1 Joñas Cohn na sua obra AUgemeinen Ásthetik parte de um ponto de vista análogo. Cf. I. c., pp. 32 e segs., 35.

368 muito mais estreita do que entre uma concretização de uma obra literária e as respectivas vivências de apreensão e, apesar disso, ninguém diria que a cor é extensão ou que a extensão é cor nem, finalmente, que a extensão é uma parte da cor em causa. E do mesmo modo como um arco-íris não é nada de psíquico, embora só se revele in concreto quando sob determi­ nadas condições objectivas se dá uma percepção visual, também a concretização de uma obra literária é, sem dúvida, condicio­ nada no seu ser por vivências correspondentes mas tem, ao mesmo tempo, o seu fundamento ontológico na própria obra literária e é, por outro lado, em relação às vivências de apreen­ são tão transcendente como a própria obra literária. Não podemos aqui apresentar nenhuma teoria pormenori­ zada da consciência e do ser psíquico nem também das pos­ síveis relações que objectividades ontològicamente autónomas e heterónomas podem manter com as vivências da consciência. Bastará, porém, recordar talvez que cada vivência afinal só pode ser apreendida na reflexão ou na experiência completa do acto e tudo o que é psíquico só pode ser captado na per­ cepção interior *(i. é, nas palavras de M. Geiger, na «interiorização»). Se a concretização de uma obra literária fosse um componente real das vivências da consciência em questão ou se fosse algo de psíquico então ela teria de ser apreendida também por esta via e só por ela. Contudo, este não é o caso nem da própria obra literária nem de quaisquer concretizações de obras literárias. Com efeito, ninguém visa durante a leitura ou como espectador no teatro as suas próprias vivências ou os próprios estados psíquicos. Qualquer pessoa riria se lhe propuséssemos fazê-lo. Só aos cientistas teorizadores da literatura lhes ocorre o pensamento peregrino de procurar a obra literária «na alma» do leitor.

§ 63. A obra literária e as suas concretizações Depois de no parágrafo anterior termos delimitado as con­ cretizações de uma obra literária relativamente às vivências de apreensão subjectivas vamos agora traçar a linha divisória entre as concretizações e a própria obra. Podemos lidar estéticamente com uma obra literária apenas sob a forma de uma das suas possíveis concretizações e assim

369 apreendê-la ao vivo K Na verdade, temos de nos haver com ela exactamente na forma em que ela se manifesta na concretização em causa. Contudo não visamos, ao fim e ao cabo, a concreti­ zação enquanto tal mas sim a obra em si mesma e em geral não tomamos consciência da sua diversidade em relação a cada concretização. Apesar disto, ela é essencialmente distinta de todas as suas concretizações. É só nestas que ela se manifesta e se explicita, mas cada um destes desenvolvimentos (na medida em que não é uma mera reconstrução da obra) ultrapassa-a necessàriamente. Por outro lado, nenhum destes desenvolvimen­ 1 Numa observação superficial esta frase parece levar a uma dificul­ dade de princípio. Efectivamente, como podemos nós opor a obra literária às suas concretizações e apreendê-la na estrutura que é própria só dela e não das suas concretizações se nós apenas a podemos apreender na forma que ela toma em cada uma das suas concretizações? Não havendo, por assim dizer, nenhum acesso d ire cto à própria obra literária todas as nossas análises correrão perigo de ficarem a pairar no ar. Cremos que o conteúdo de verdade das nossas análises as defenderá contra uma tal objecção. Pretendemos, apesar disso, mostrar que uma tal objecção. é improcedente. Em primeiro lugar, se de facto apenas podemos apreender cada obra literária singular numa das suas concretizações esta concreti­ zação não é de modo algum pretexto que nos impeça o acesso à própria obra. Já as diferenças individuais entre as várias concretizações singulares nos dão a possibilidade de destrinçar o que pertence à própria obra e o que pertence às concretizações casualmente condicionadas. Em segundo lugar, estudamos aqui não uma obra singular na sua individualidade mas sim o conteúdo da ideia geral de toda a obra literária (cf. Questões Essen­ ciais, p. 52). Não precisamos, portanto, de permanecer nas concretizações in­ dividuais. Mas também se procurássemos apreender uma obra de arte lite­ rária muito determinada seria possível, por assim dizer, aprgendê-la na sua forma pura. O que distingue então a obra em si mesma das suas concretizações? Primeiro, o facto de os pontos de indeterminação que estão contidos na própria obra serem na concretização, em parte, preen­ chidos. Em segundo lugar, o facto de as potencialidades encerradas na própria obra (como os aspectos postos à disposição, as qualidades meta­ físicas) serem nas concretizações transformadas em actualidades. Final­ mente, nas concretizações a apreensão das unidades de significação pode ser inadequada. Todavia, em todos estes pontos é possível proceder, ao concretizarmos a obra, de modo que estas diferenças desapareçam. Pode­ mos, portanto, abster-nos do preenchimento dos pontos de indeterminação como da transformação das potencialidades em actualidades e, finalmente, realizar de modo plenamente adequado a concretização das unidades de significação. Nessa altura obtemos uma «concretização» muito especial da obra a que eu chamei noutro lado (cf. Über das E rkennen des literarischen W erkes) «reconstrução» da obra literária. É de notar ainda, por fim, com respeito à possibilidade dos resultados apresentados, que falamos aqui no texto da relação estética com a obra, enquanto a condição de possibilidade de salientar os nossos resultados constitui um acesso te o ré tico puram ente cogn oscitivo à obra. 24

370 tos vai tão longe como a própria obra uma vez que neles geral­ mente se produzem as já anteriormente mencionadas abrevia­ ções e eventualmente também modificações dos elementos da obra então apreendidos. A concretização encerra não só diversos elementos que não estão realmente contidos na obra mas são por ela permitidos como também assinala muitas vezes elementos que são estranhos à obra e a encobrem em maior ou menor grau. São estes factos que nos obrigam a traçar em pormenor e logicamente a linha divisória entre a obra literária em si mesma e as suas múltiplas e várias concretizações. 1. Na obra puramente literária intervém os fonemas signi­ ficativos como típicas qualidades de forma, às vezes peculiar­ mente entretecidos de qualidades de manifestação. Na concre­ tização através de uma exposição em voz alta (declamação) estas qualidades de forma são sustentadas por sons concretos e assim manifestadas e concretamente preenchidas K Os sons concretos oferecem neste processo outras qualidades diferentes ainda cujo domínio é predeterminado ou perriiitido pela forma fónica sustentada e as quais têm relativamente ao todo da concretização um papel eventualmente modificador mas, em todo o caso, complementar. Estas qualidades variam de caso para caso e fundamentam (embora não só elas) a diferença enlre as concretizações singulares de uma e a mesma obra literária. Esse seu efeito modificador que eventualmente aparece não se limita necessàriamente ao estrato das formações fónico-linguísticas mas pode expressar-se também em modificações noutros estratos da obra concretizada na medida em que ou contribui para uma melhor expressão e complemento de sen­ tido de outros estratos ou traz consigo obnubilações e defor­ mações de outros elementos destes últimos, cf. «uma boa» e «uma má» declamação. No primeiro caso, a obra'concretizada pode ganhar novos valores estéticos a ela própria estranhos, tomada na sua pureza, mas no entanto «adequados»; no segundo, pelo contrário, pode perder diversos valores que de acordo com a sua essência ela deveria possuir (isto quer dizer que não chegam a manifestar-se). 2. As significações das palavras e os conteúdos de sentido das frases podem na concretização, mesmo no caso de uma

1 Uma modificação especial ocorre no caso de uma leitura silenciosa na medida em que o elemento gráfico aqui, em primeiro lugar, desempenha um papel e depois os fonemas significativos não são percepcionados in concreto mas apenas representados. Não vamos ocupar-nos mais deste assunto.

371 apreensão em princípio adequada, estar entretecidos de compo­ nentes de sentido não passíveis de precisão e variáveis de caso para caso (quando, p. ex., muitas palavras numa determinada região possuem um colorido local específico de sentido que, de certo modo, não é «traduzívei» \ Mesmo que não provoquem divergências mais significativas no estrato das unidades de sen­ tido de uma determinada obra literária podem, no entanto, determinar as relações objectivas intencionais ou as objectivi­ dades apresentadas e muito em particular o «m odo de parecer» destas últimas, sob ângulos diversos, mais pormenorizadamente ou de modo diferente do que é predeterminado pela própria obra. Deste modo, podem ser eliminados em parte os pontos de indeterminação necessários à própria obra, em especial quando entre os elementos de significação entretecidos se encon­ tram actualizações de momentos do estado potencial das signi­ ficações nominais das palavras que intervém na obra respectiva. Se os componentes de sentido entretecidos arrastam consigo divergências ou mesmo transformações mais significativas dos sentidos das frases, pelo que, naturalmente, já se não pode falar de uma apreensão adequada do estrato de significação da obra, então dá-se — como em geral impropriamente dizemos — uma «alteração» da obra inteira. De facto, trata-se aqui ou de uma ocultação modificadora ou de uma criação consciente de uma nova obra que em relação à original apenas é mais ou menos afim. 3. Os sentidos das frases são na concretização de facto apreendidos, i. é, intencionados. Eles já não permanecem na forma da intencionalidade emprestada que é essencial para o estrato de significação da própria obra literária mas são extraídos pelo leitor das palavras (ou frases) e de facto actualmente intencionados. Naturalmente — acentuamo-lo mais uma vez — , o sentido intencionado não se torna deste modo algo de psíquico. Seria absurdo afirmá-lo. 4. A diferença mais radical entre a obra literária e as suas concretizações ocorre no estrato dos aspectos. Do seu simples estado de disponibilidade e esquematização na própria obra os aspectos, pelas concretizações, atingem a esfera do concreto e elevam-se à vivência da percepção (no caso de uma represen­ tação teatral) ou à vivência da fantasia (no caso de uma leitura).

1 Isto é, em termos mais exactos: o sentido deste colorido não é geralmente captado com clareza em separado e só pode ser apreendido, ou melhor, intencionado à mistura com todo o material de significação em virtude de uma experiência imediata correspondente. Cf. a este respeito as observações pertinentes de H. Ammann, Die menschlicke Rede, vol. I.

372 Neste ponto, os aspectos concretamente vividos ultrapassam o conteúdo esquematizado dos aspectos postos à disposição na obra na medida em que o puro esquema é, sob vários ângulos, preenchido por elementos concretos. Como conseqüência destes preenchimentos, que na verdade são em certos limites predeter­ minados pelos aspectos esquematizados mas, apesar disso, variam de caso para caso, duas concretizações, quaisquer que elas sejam, duma e a mesma obra têm necessàriamente de ser diferentes uma da outra. Os complementos e as transformações que nelas ocorrem podem, no entanto, ser de natureza tão múltipla e variada que quase não é possível prever que forma tomará a este respeito uma determinada concretização singular. E isto em especial também em virtude de cada aspecto concretamente vivido do objecto apresentado ser apenas análogo a um recorte extraído, por abstracção, do conteúdo total do aspecto do nosso mundo ambiente respectivo, um recorte que efectivamente está mergulhado no aspecto global desse nosso mundo ambiente, com ele está entretecido e de muitos modos depende funcio­ nalmente do «resto» desse conteúdo. Os complementos (preen­ chimentos) e as modificações a eles ligadas no conteúdo dos aspectos (por mais pequenos que sejam) podem, p. ex., provocar o predomínio de um tipo de aspectos não preestabelecido na obra. Os objectos apresentados podem, por isso, na concreti­ zação surgir, p. ex., numa forma muito mais intensamente racionalizada do que de facto são apresentados na própria obra e tornados visíveis no seu aparecimento 1 através dos aspectos disponíveis. Os aspectos concretos podem, em conseqüência disto, conter momentos decorativos inteiramente novos que, por assim dizer, não estão na intenção da obra e, portanto, podem até impor um novo estilo à obra totalmente concretizada. Se, no caso de uma transformação tão profunda do estrato dos aspectos, a concretização em causa deve ainda ser considerada como uma concretização da mesma obra ou se, pelo contrário, revela uma obra completamente nova, essa questão exigiria uma ampla análise particular em cada caso concreto. Contudo, a identidade da obra que se mostra em tão diferentes concreti­ zações só se poderá manter se as objectividades nela apresen­ tadas permitirem, no seu modo de parecer, estilos diferentes de modalidade de aparecimento e se, ao mesmo tempo, a alteração

1 Rigorosamente falando, é só na concretização que se dá efectiva­ mente este aparecimento.

373 do estilo de aparecimento nao tocar ‘ nem ao de leve na reve­ lação das qualidades metafísicas predeterminadas na própria obra. Se as duas condições não forem satisfeitas então temos perante nós a concretização de uma nova obra. Se esta con­ cretização é considerada uma concretização da obra original, nesse caso temos fenómenos característicos de ocultação. Durante séculos uma obra literária pode ter-se expressado apenas em tais concretizações que a ocultaram e falsificaram até que um dia aparece alguém que compreende essa obra como deve ser e a intui adequadamente, revelando aos outros, desta ou daquela maneira, a sua forma autêntica. O grande papel da crítica literária (em especial da história da literatura) ou — quando se trata de uma peça de teatro — do encenador consiste na pos­ sibilidade de exprimir de novo a forma autêntica da obra mas também de precisamente a ocultar, por uma falsa interpretação, nas concretizações análogamente estruturadas. Quando, porém, a alteração de estilo do modo de apareci­ mento não chega a provocar transformações tão profundas da obra, de modo que permanece intacta a sua identidade, essa alteração ainda admissível de estilo nas concretizações provoca também uma modificação da polifonia global e valiosamente qualitativa da obra. Em vista disto, abre-se assim a possibilidade da mudança de uma e a mesma obra literária no decurso da produção das suas concretizações, a possibilidade da «vida» da própria obra literária. Esta possibilidade está, naturalmente, em conexão com as transformações que ocorrem nos outros estratos da obra concretizada. Em breve voltaremos ao assunto.

1 A partir deste ponto de vista torna-se possível discutir se uma deter­ minada representação de uma peça teatral é «b o a » ou «m á» e compreender o sentido a que ela inteiramente tem direito. Aliás, pode haver casos, pre­ cisamente quando forem satisfeitas as condições por nós indicadas, em que ambas as partes em discussão têm razão e a polémica é estéril. Mas também, então, se poderá provar objectivamente a legitimidade fundamen­ tal de ambos os pontos de vista. O ponto de vista subjectivista de muitos críticos, que por princípio consideram a sua «im pressão» individual como a única coisa decisiva, vai decerto longe de mais. A chamada «subjectividade» da crítica ou das análises histórico-literárias existe, sem dúvida, mas só nos casos em que os respectivos críticos se atêm exclusivamente às concretizações mutáveis da obra. Todavia, é justamente isto que não c necessário e basta apenas uma orientação directa no sentido do essencial da obra em questão e a eliminação das múltiplas casualidades das concre­ tizações singulares para se sair do estado desesperado da subjectividade radical. No fundo, o ponto de vista radicalmente subjectivista da crítica literária é apenas uma ingenuidade.

374 5. A concretização da obra literária caracteriza-se ainda pelo facto de só nela se dar um aparecimento real e explícito das objectividades apresentadas, enquanto esse aparecimento na própria obra é apenas esboçado e através dos aspectos postos à disposição abandonado em estado potencial. Um aparecimento pleno em moldes de percepção só a concretização de uma peça de teatro o pode dar. Nisto reside o já aludido primado deste género de obras literárias. 6. Na concretização da obra também se chega a uma situa­ ção que nos pode induzir a erro quanto à verdadeira essência da obra literária. Pelas transformações que ocorrem aquando da concretização da obra nos estratos das formações fónico-lin­ guísticas das unidades de significação e dos aspectos são eli­ minados 1 precisamente muitos pontos de indeterminação dos objectos apresentados. Por esta razão, deparam-se-nos na con­ cretização os objectos apresentados numa forma muito mais plena do que aquela que na própria obra de facto possuem. A sua constituição é aqui levada um pouco mais longe. Contudo, em princípio ela não pode em nenhuma concretização ser com­ pletada no sentido de não restar absolutamente ponto algum de indeterminação nos objectos apresentados. Pois à essência dos objectos puramente intencionais pertence — assim afirma com pleno direito Edmund Husserl, embora estenda indevida­ mente esta afirmação aos objectos reais — a impossibilidade de atingir numa série finita de constituições a plena constituição. Acontece, porém, que os objectos apresentados em obras lite­ rárias são, pelo seu conteúdo, quase exclusivamente do tipo dos objectos reais que — como já anteriormente se verificou— só podem existir enquanto determinados unívocamente sob todos os ângulos. Em conseqüência disto, na apreensão dos objectos apresentados numa concretização da obra já estamos de antemão preparados para a tratar como plenamente determinada e para esquecer que temos aqui de lidar com objectividades puramente intencionais. Com isto desfiguramos, é certo, a obra literária

1 Para que a identidade da obra seja mantida não devem ser ultra­ passados os limites de variabilidade dos preenchimentos singulares que são prescritos pelos momentos constituídos na obra. Esta variabilidade, no caso de se manter a identidade da obra, só é, aliás, permitida porque a obra é uma formação esquemática. W. Conrad fala de uma esfera de irrelevância na «realização» da obra e tem, então, provàvelmente em vista essa permitida variabilidade dos preenchimentos singulares tanto no estrato dos aspectos como no dos objectos apresentados. Mas só a manifestação da obra literária como formação esquemática nos deixa compreender que esta esfera de irrelevância é possível e permitida pela essência da obra.

375 mas só assim as objectividades apresentadas que na concreti­ zação atingem a sua expressão adquirem, pelo seu conteúdo, uma aproximação tão nítida do tipo dos objectos reais que a sua força sugestiva aumenta em alto grau. Somos então quase inclinados a acreditar na sua realidade e, contudo, nunca leva­ mos esta crença plenamente a sério1 por causa da atitude estética. Precisamente, este começo de uma posição de realidade que nunca chega a atingir uma realização séria e, por assim dizer, é sempre sustida mesmo no último momento, constitui a essência especial da atitude estética e traz consigo o encanto muito peculiar que nos oferece o convivio com as obras de arte em geral e, em particular, as literárias. «R eal» de facto e contudo não totalmente a sério, arrebatador e contudo não nos oprimindo tanto como o faz o real, «verdadeiro» e no entanto apenas «fantasía». Esta atitude permite-nos gozar efectivamente as qua­ lidades de valor estético da obra e dar-nos esse encanto peculiar que nenhum facto real — nem mesmo o «mais belo» — nos é capaz de proporcionar. O começo de posição de realidade que acontece no nosso contacto vivo com as obras de arte literárias na sua concretização é indispensável para esta intuição dos valores estéticos e não seria possível — naturalmente, só no caso de obras literarias — sem a modificação quase-judicativa das frases afirmativas. Quando nós, em razão de quaisquer circuns­ tâncias em que se dá a concretização da obra, somos logo de princípio obrigados a pensar que nos acontecimentos e objectos apresentados se trata de formações puramente ficticias que não comportam em si nenhum indício do aspecto de realidade então a obra permanece para nós algo de irrelevante, morto, dispen­ sável, a sua polifonia valiosamente qualitativa não tem possi­ bilidade de se desenvolver nem tão-pouco as qualidades meta­ físicas atingem a sua revelação2. Mas também qualquer passo para além do mero aspecto de realidade na direcção de uma

1 Naturalmente, também é possível uma atitude, em especial durante a representação de uma peça de teatro, em que se realize uma posição incondicional positiva das objectividades apresentadas (crianças no teatro). Nesse caso estamos perante uma ilusão digna de nota que não permite a apreensão dos valores estéticos da obra de arte literaria em causa na sua concretização. Por esta razão, pensamos que Konrad Lange labora em erio na sua concepção da essência da arte embora esta pareça à primeira vista bastante plausível. Seria necessário ainda analisar em pormenor o que ele, afinal, entende por «ilusão». Mas isto levar-nos-ia demasiado longe. 2 Se é isto que Konrad Lange tem em mente quando fala de uma «ilusão» então o seu ponto de vista deve, em princípio, manter-se como válido.

376 posição de realidade plenamente a sério ou de uma ilusão per­ feita torna impossível a manifestação adequada da obra de arte literária na concretização em causa. 7. Finalmente, ainda é de mencionar uma outra peculiari­ dade da concretização de uma obra literária para a qual, aliás, já anteriormente chamámos a atenção. A ordenação especial da seqüência das partes numa obra literária transforma-se, na concretização, numa seqüência autêntica no tempo fenomenal e concreto. A obra literária atinge aqui um desenvolvimento autêntico. Cada concretização da obra literária é uma formação temporalmente extensa. A extensão temporal que toda a con­ cretização abrange pode ser, conforme as circunstâncias, maior ou menor mas nunca pode desaparecer. Só por este meio pode também a dinâmica interna e externa da obra de arte literária atingir expressão progressiva, ao passo que na própria obra permanece em particular potencialidade. Só assim numa con­ cretização podem chegar à plena constituição aqueles valores estéticos que são condicionados pela dinâmica da obra ou por ela sustentados.

§ 64. A «vida» da obra literária nas suas concretizações e as suas transformações como conseqüência das mutações destas As considerações do último parágrafo abriram-nos o cami­ nho para um novo problema que nós vamos designar como o problema da vida da obra literária. A palavra «vida» é aqui tomada num sentido translaticio e impõe-se, portanto, esclarecer, em primeiro lugar, a significação original desta palavra pelo menos nos seus elementos principais. É, sem dúvida, bastante difícil circunscrever exactamente esta significação uma vez que a essência da vida não foi até agora satisfatoriamente revelada. Apenas algumas anotações indispensáveis a este respeito nos vão facilitar a discriminação do estado de coisas que se nos depara na obra literária. A palavra «vida» significa sobretudo duas coisas: a totali­ dade dos acontecimentos de um ser vivo do princípio até à sua morte e, em segundo lugar, o «processo» do devir destes mesmos acontecimentos. Quando tomamos a palavra «vida» neste se­ gundo sentido chama-nos sobretudo a atenção o facto de todo o ser que «vive» durar como um e o mesmo indivíduo um certo tempo. Enquanto ele simplesmente existir não pode haver

377 nenhuma fase de interrupção da sua vida. Mas também em sentido inverso: se a vida de um indivíduo cessa então esse indivíduo cessa também de existir. A vida, neste sentido, é um modo especial do ser de indivíduos de determinada natureza. A duração contínua da vida não chega, porém, para a caracte­ rizar exaustivamente dado que também coisas «m ortas» duram um certo tempo e continuamente. Tem, pois, de se acrescentar ainda um segundo elemento: cada ser vivo transforma-se cons­ tantemente durante a sua vida (no primeiro sentido da palavra). Pode perguntar-se se este transformar-se deve estender-se por continuidade a toda a vida (como alguns investigadores afir­ mam, p. ex. Bergson). Ora este transformar-se como tal não é característico da vida. Tem de haver um sistema especial de transformações que apesar de todas as contingências em que vive um determinado indivíduo se mantém como típico em todos os seres vivos e determina a «vida» de um indivíduo (no primeiro sentido) como um todo típico e unitário. Cada ser vivo possui um sistema determinado de transformações em que este ser se «desenvolve» e que levam a uma fase de cul­ minação em que aquilo que anteriormente apenas estava em germe e implicado numa especial potencialidade1 actual se «desenvolve» no que o ser vivo respectivo deve «propriamente» ser. A esta fase de culminação segue-se de novo um sistema de transformações características em que se processa um retroceder mais lento ou mais rápido (ou mesmo abrupto), um decair até ao momento da incapacidade de vida, até à «m orte». Atravessar estas fases características de transformação parece-nos ser o momento essencial da vida. Sem dúvida que diferentes circuns­ tâncias em que se desenvolve um ser vivo podem impedir que ele chegue à sua fase culminante, por assim dizer prescrita, de modo que ele ainda imaturo definha precocemente e tende para a morte, como é também possível que a vida de um indivíduo seja abruptamente «interrompida» por circunstâncias exteriores. Mas o facto de aqui, em geral, se poder falar com direito de um «período de maturidade» ou de um desenvolvimento por determinadas circunstâncias diferente daquele que «seria pro­ priamente de esperar» mostra do melhor modo possível a exactidão desta concepção de vida. E ainda mais: se aquilo que vive tem necessàriamente de ser um ser psíquico ou mesmo

1 É de recordar aqui a frase paradoxalmente formulada de M. Heidegger: «Existir é a sua própria possibilidade.» (Cf. Sebi und Zeit, pp. 42 e 43.)

378 até consciente pode pelo menos ser posto flagrantemente em dúvida. Quer seja psíquico, quer não, cada ser vivo tem um modo activo de reacção que dele emana às forças que sobre ele actuam (ou pelo menos parece tê-lo). Este modo de reacção é inteiramente diferente da maneira como as coisas (mortas) se «submetem passivamente» às suas alterações Os momentos essenciais da vida por nós indicados não chegam, sem dúvida, para esgotar a sua essência. Mas o que dissemos é o bastante para o nosso objectivo. Está fora de dúvida que a obra literária não tem a capaci­ dad e de «viver» neste sentido estrito. É, porém, necessário salientar os momentos diferenciais e as analogias. Na medida em que uma determinada obra literária acabou de ser escrita (ou concebida) ela pode existir sem sofrer nenhuma alteração e mesmo até quando apareceram inúmeras concreti­ zações suas. Na essência da própria obra literária nada há que traga consigo a necessidade de uma alteração. Só é necessário e evidente, em virtude da sua estruturação própria, que ela afinal seja uma vez produzida. Com efeito, o estrato das frases plenas de sentido e em especial as múltiplas conexões de frases que de facto existem numa obra mas são casuais no sentido de serem possíveis outras conexões, persistindo as mesmas frases 2 simplesmente numa outra ordenação, remetem para ope­ rações subjectivas em que foram construídas as frases e deter­ minadas as suas conexões. Como objecto puramente intencional a obra literária não precisa de participar nos acontecimentos do mundo real nem de ser por estes envolvida no seu curso. Mas precisamente porque resultou da realização de operações subjectivas e assim cai, em princípio, dentro do âmbito de poderes de indivíduos psíquicos capazes de efectuar tais ope­ rações e porque, ao mesmo tempo, as frases uma vez construídas não têm necessàriamente de permanecer na forma originàriamente recebida, pode a obra literária sofrer transformações sem que por isso deixe de ser a mesma. E justamente podem ser transformações que não acontecem apenas no estrato das for­ mações fónico-linguísticas (como porventura no caso de uma tradução «fie l») mas também no das unidades de significação, e por isso nos outros estratos da obra que destas são consti-

1 Cf. M. Scheler, Über die Stellung des Menschen im Kosmos, 1928. 2 «As mesmas frases» embora com a limitação, aliás, de intervirem diversas modificações de sentido no seu conteúdo mercê da alteração da ordenação (cf. § 23).

379 tutivamente dependentes. Basta a prática diária para nos con­ vencermos de que numa obra muitas frases (e com elas rela­ ções objectivas) podem ser omitidas ou substituídas por outras convenientemente escolhidas sem que por isso o essencial dos objectos e acontecimentos apresentados como também a polifo­ nia valiosamente qualitativa característica da obra em questão sejam tocados nem mesmo ao de leve. As alterações podem mesmo ir tão longe que, p. ex., pela omissão de zonas «dispen­ sáveis» a obra em causa se pode tornar mais concentrada, intensificada na sua dinâmica intrínseca e com isto em deter­ minados casos «melhorada» sem se tornar só por isso numa segunda obra K Deparam-se-nos aqui problemas essenciais de natureza intei­ ramente diferente da dos que tratámos na II Parte. Aí era a estrutura básica essencial da obra literária que em geral estava em questão. Aqui trata-se daquilo que é essencial ou não para uma obra literária singular muito determinada e tomada na sua individualidade que como obra literária deve conter em si a estrutura já anteriormente analisada. Só investigações muito concretas feitas sobre uma obra determinada podem decidir, a este respeito, o que pertence à sua essência e deste modo até que ponto se podem dar tais transformações sem que por isso a obra original seja destruída ou uma obra inteiramente nova seja criada. Qualquer que seja o caso particular é, contudo, claro: 1. que todas estas transformações só podem ser provocadas sob a condição de se realizarem operações subjectivas corres­ pondentes dirigidas para elas (portanto, por assim dizer, «de fora»); 2. que a realização destas operações apenas pode acon­ tecer aquando da actualização de uma concretização da obra. A obra uma vez criada não é capaz de se alterar a si mesma, por assim dizer, separada das suas concretizações e não é cer­ tamente a nenhum respeito; só pode ser alterada. Isto já está implícito no facto de nenhum dos seus estratos nem ela própria tomada como um todo serem um objecto ontològicamente autónomo. Através de operações subjectivas correspondentes ela é criada, alterada, destruída. Pois uma obra literária pode ser destruída quando o autor aniquila a obra já criada por actos peculiares intencionais e, ao mesmo tempo, também destrói as condições físicas cuja existência tornaria possível a outros sujei-

1 Cf. a este respeito Max Scheler, Fonnalismus z/z der Ethik, Jahrbuch f. Philos., vol. I, p. 419,

380 tos psíquicos a concretização da obra pelo autor condenada ao não-ser. Se observarmos •■■•que uma obra literária pode sof-rer uma transformação apenas sob a condição de se manifestar numa concretização então verificaremos que se pode falar da sua «vida» num sentido duplo e nos dois casos translaticio: 1. A obra literária «v ive» na medida em que atinge a sua expressão numa multiplicidade de concretizações. 2. A obra literária «vive» na medida em que sofre transformações em conseqüência de concretizações sempre novas estruturadas con­ venientemente por sujeitos conscientes. Tentemos desde já esclarecer mais de perto o primeiro sentido. As concretizações singulares de uma e a mesma obra são, por um lado, objectividades individuais que não têm nenhuma parte real comum e, assim, constituem uma variada multipli­ cidade distinta. Por outro lado, continuam a ser concretizações de uma e a mesma obra. Contudo, isto não quer dizer apenas que elas são mais ou menos semelhantes umas às outras, mas sobretudo que todas elas estão numa relação especial para com esta obra. Tentaremos esclarecer no próximo capítulo esta rela­ ção. Além disso, esta multiplicidade de concretizações está em geral ordenada temporalmente', há concretizações que se desen­ volvem temporalmente mais cedo e outras que se processam mais tarde *. A distinção e a separação temporal das concreti­ zações (de um e o mesmo leitor) tornam impossível que uma concretização possa provocar directamente alterações numa que ocorre temporalmente mais tarde. Para que uma alteração que por quaisquer motivos foi originada numa concretização Cn possa intervir nas concretizações mais tardias da mesma obra é-lhe necessário um novo factor que se encontre fora da própria obra e das concretizações: i. é, de um indivíduo consciente que concretize a obra e de quem a concretização Cn for conhecida por experiência própria. Se este factor entra em jogo, o que — como vamos v e r — ainda pode acontecer por vias diferentes, então é possível que as concretizações mais tardias tenham, por assim dizer, em conta as alterações que se deram nas concretizações anteriores, não sendo de excluir que surjam

1 Isto não basta para afirmar que a propósito de duas concretizações quaisquer de uma obra uma delas tenha necessàriamente de ocorrer «mais cedo» e a outra «mais tarde». Com efeito, é possível que duas ou mesmo muitas concretizações se desenvolvam simultáneamente ou coincidam em parte temporalmente.

381 repercussões. Temos aqui em vista especialmente as seguintes situações possíveis: Quando lemos a mesma obra sucessivamente várias vezes (mesmo com intervalos de tempo bastante grandes) conservamos em geral uma recordação mais ou menos fiel das concretizações que se constituíram nas leituras anteriores e efectuamos muitas vezes a nova leitura, por assim dizer, sub specie destas con­ cretizações anteriores sem que em geral tenhamos claramente consciência de quais as particularidades destas concretizações que são propriamente delas e quais, pelo contrário, as que são a expressão adequada da própria obra (e, no sentido mais estrito, as «suas» concretizações). Nós podemos, p. ex., de prin­ cípio assumir uma atitude perante a obra em questão que se não ajuste inteiramente, assim lê-la «erradamente», i. é, desen­ volver concretizações que não dão à obra uma expressão ade­ quada. E então ficamos presos a esta maneira «errada» de ler; as novas concretizações, que naturalmente trazem consigo de modo inevitável novas alterações, ostentarão em si todos os indícios desta primeira concretização não adequada. Só uma mudança da atitude original — provocada quer por circunstân­ cias exteriores, quer pelo facto de num certo momento feliz sermos especialmente receptíveis às peculiaridades da obra e de adquirirmos uma melhor compreensão dela — pode, como de um golpe, quebrar esta série conexa de concretizações e iniciar uma outra série diferente da primeira em particularidades deci­ sivas. É natural que a série que se constrói a partir da primeira concretização não adequada possa conter nos seus elementos mais tardios particularidades sempre novas que estão, por assim dizer, todas numa mesma linha e com isto apresentar um desen­ volvimento cada vez maior da tendência original que estava germinalmente contida na primeira concretização. É, contudo, igualmente possível que as concretizações mais tardias sejam expressões cada vez mais perfeitas e adequadas da obra ou que as diversas modificações se mantenham dentro do enqua­ dramento dos momentos não unívocamente estabelecidos pela própria obra. As concretizações podem então apresentát* tim desenvolvimento cada vez mais progressivo dos tipos permitidos pela obra, p. ex., dos momentos decorativos das multiplicidades de aspectos ou do preenchimento dos pontos de indeterminação e outras coisas ainda. E de novo pode ocorrer uma alteração destes tipos permitidos, etc. É um facto conhecido que cada época, na evolução geral da cultura humana, possui os seus tipos especiais de compreensão, de valores estéticos e extra-estéticos, as suas predisposições determinadas para precisamente tais e

382 não outros modos de apreensão do mundo em geral e também das obras de arte. Em certas épocas somos especialmente receptíveis a determi nadas qualidades de valor estético, enquanto para outras somos cegos. E se também somos capazes de con­ templar estas últimas nas obras de arte que nos são oferecidas estão-nos, porém, mais próximos os valores que são caracterís­ ticos dessas épocas. Se a obra literária ou a obra de arte literária não fosse uma formação esquemática, como de facto é, então também não seria possível que em épocas diferentes pudesse haver concretizações de uma e a mesma obra, todas elas uma expressão adequada ou pelo menos permitida pela obra e contudo distinguindo-se entre si, em muitos aspectos radical­ mente. Só a essência esquemática da obra literária faz que este facto seja possível e compreensível. Mas nem sempre — como aliás já verificámos anteriormente— o desenrolar da multipli­ cidade das concretizações da obra se processa no sentido de as transformações que nelas ocorrem se manterem únicamente dentro dos limites predeterminados pela obra. Chega-se muitas vezes a profundas divergências em relação à obra e a diversos fenómenos de ocultação que estão em conexão com as mutações já indicadas da atmosfera cultural. Estão, no entanto, ainda em estreita relação com outras situações objectivas. Para determi­ nadas obras de arte, e em especial para as literárias, temos de ser convenientemente educados a firú de que as concretizações que se desenvolvem possam exprimir a obra de modo adequado. Esta educação pode processar-se por vias diferentes. E com isto chegamos àqueles casos em que na mediação entre concre­ tizações singulares colaboram ainda factores diferentes do acima indicado. Vem, em primeiro lugar, a transmissão processada oralmente ou por escrito a outros leitores dos momentos carac­ terísticos das concretizações singulares da obra na medida em que um leitor conta a outro estas concretizações ou relata1 o modo próprio da apreensão da obra. Todos os artigos críticos, estudos, discussões, ensaios de interpretação, análises histórico-literárias, etc., pertencem a este domínio e desempenham a função de transmissão na realização de concretizações sempre novas da obra. Eles educam o leitor a compreender a obra de determinado modo e a apreendê-la assim em concretizações de determinada modalidade; às vezes educam-no bem, outras vezes

1 Em geral este relato toma a forma de uma informação sobre a própria obra uma vez que o informador não toma a consciência da dife­ rença entre a obra e a sua concretização individual.

mal. Um outro caso de mediação deste género é constituido, relativamente aos espectáculos teatrais, pela representação da obra a que o encenador dá forma segundo a sua compreensão da obra em causa. A representação mostra esta obra aos espec­ tadores numa forma que prescreve uma multiplicidade de con­ cretizações determinadamente especificadas. Tanto as «repeti­ ções» desta representação como as imitações dela por outros encenadores levam a concretizações que se submetem todas ao modelo não só dessa primeira representação mas também da■quela concretização da obra que se constituiu para o encenador aquàndo da sua leitura. Sem dúvida que neste caso se altera a relação recíproca das várias concretizações singulares entre si. Pode dizer-se que é a represeniação-modelo e não a peça teatral em si mesma que, por seu lado, experimenta concretizações. Forma-se dentro de toda essa multiplicidade das concretizações da obra um grupo especial entre cujos elementos existe uma relação mais estreita. Pouco a pouco vai-se criando uma tra­ dição de representar de determinada maneira a obra em causa ou de a compreender, de modo que o leitor fica logo de prin­ cípio sob a impressão de uma «atmosfera literária» produzida por estas diferentes vias. Isto tem uma influência determinante sobre a formação das concretizações da obra. Esta «atmosfera literária» insere-se na atmosfera cultural geral da época e está em diferentes relações funcionais com ela. Essa atmosfera tem a tendência para se manter por mais tempo. Só quando as cir­ cunstâncias exteriores da vida são alteradas por quaisquer acon­ tecimentos, p. ex., políticos ou quando surge uma forte indivi­ dualidade que ou pela criação de obras literárias de um novo tipo ou por um novo género de interpretação das obras literárias já existentes penetra incisivamente na atmosfera cultural domi­ nante se pode chegar a uma transformação desta atmosfera. ■As concretizações da obra que se constituem após esta trans­ formação tomam então, como é óbvio, uma outra forma dife­ rente, etc. Falar da atmosfera cultural de uma época é, natu­ ralmente, apenas uma aproximação simplificadora e estabilizante. Esta atmosfera transforma-se constantemente embora devagar e para os homens da época respectiva, em geral, imperceptivelmente. Também encerra em cada uma das suas fases temporais momentos sem conexão e incoerentes. Mas apesar disso é pos­ sível salientar em toda essa multiplicidade variada de correntes, tendências, atitudes, etc., que se cruzam um d¡eterminado «traço da época», que se faz notar em especial no estilo das obras de arte criadas nessa mesma época. Por outro lado, deixam-se esta­ belecer determinadas linhas de mutação que se processam no

384 decorrer das épocas. Uma vez que as concretizações da obra literária são dependentes das atitudes dos leitores elas são, consequentemente, portadoras, sob vários pontos de vista, dos «traços da época» e participam até certo grau nas mudanças da atmosfera cultural. Chegamos assim à conclusão de que a multiplicidade das concretizações de uma e a mesma obra não está só ordenada de um modo puramente temporal mas denuncia também uma ordenação de conteúdo relativa à atmosfera da época respectiva e, portanto, neste sentido é permitido falar aqui de evoluções, mutações imprevisíveis, repercussões e renas­ cenças. Se temos apenas em vista a multiplicidade de concre­ tizações de uma obra em desenvolvimento progressivo então podemos falar de uma «vida» da obra literária nas suas con­ cretizações. Apesar de todas as diferenças que existem entre «a vida» assim compreendida de uma obra literária e a vida de um ser vivo, diferenças que não são para tratar aqui com mais por­ menores, há também manifestas analogias. Contentar-nos-emos com a indicação de uma delas apenas. A vida de uma obra literária nas suas concretizações mostra — em especial quando se trata de obras de arte de primeira categoria e não de obras «nado-mortas» de mau gosto— fases marcadamente diferentes no seu decurso como a vida de um indivíduo psíquico. Há um período (sobretudo no caso de obras inovadoras) em que a obra não se pode manifestar plenamente nas suas concretizações porque os leitores não são capazes ainda de a compreender inteiramente, um período de preparação, do estar-contido-ainda-em-germe daquilo que mais tarde se desenvolve completamente ou pelo menos é susceptível de se desenvolver. Depois vem um período em que não só cresce o número de concretizações, na medida em que a obra é cada vez mais lida, mas em que ao mesmo tempo a obra, nas concretizações singulares e no desen­ rolar de toda a riqueza das suas facetas que se vão manifestando, experimenta uma expressão cada vez mais adequada — de modo semelhante ao período de maturidade na vida de um homem. A obra «vive» desta maneira, ao mesmo tempo, o ponto cul­ minante do seu «sucesso»: está no centro de interesse de uma geração, goza a valorização de todos os seus atractivos, é apre­ ciada, amada, admirada. A certa altura, porém, por quaisquer motivos altera-se a atmosfera espiritual da época. O número das concretizações decresce, constituem-se outras cada vez mais inadequadas, muitas das suas facetas acabam mesmo por não ser concretizadas, uma notável frieza penetra na relação entre o leitor e a obra, esta deixa de ser capaz de arrebatar os leitores,

385 torna-se-lhes cada vez mais estranha e pobre nas suas concre­ tizações, até que cai em esquecimento e morre: vem o tempo em que da obra não há concretizações algumas. Este esquema geral da «vida» de uma obra literária nas suas concretizações pode, naturalmente, sofrer num caso concreto múltiplas varian­ tes. A obra pode durante longos anos não «viver» concretizações algumas e de repente eis que vem um dia breve de rápida popularidade e de múltiplas configurações concretizadas. Pode persistir através de várias épocas espirituais diferentes e a certa altura experimentar concretiz*àções que tipicamente se transfor­ mam, pode «desfalecer» e depois inesperadamente «viver» uma época de renascença, etc. De importância é apenas que efecti­ vamente aqui se nos depara uma certa analogia com a vida de um ser vivo. Há, porém, ainda outra analogia: do mesmo modo que o ser vivo se transforma em relação com a vida de outros seres vivos e sob a influência das condições reais eni que ele se encontra nas várias fases singulares da sua vida, também as mutações nas concretizações da obra literária se processam em estreita conexão com a vida de indivíduos psíquicos e sob a influência da atmosfera culturál. Aliás, manifesta-se aqui ao mesmo tempo uma diferença significativa. O ser vivo tem, mercê da sua organização e da sua autonomia no ser, os seus modos próprios de reacção às influências do mundo exterior; nele próprio está a origem destes modos de reacção. A concretização da obra literária, pelo contrário, não é um objecto ontològica­ mente autónomo. Assim, ela não tem a capacidade de «reagir» às influências culturais. Está sujeita apenas às mutações con­ forme os actos de consciência de que ela procede. Se na confi­ guração da concretização também a própria obra tem uma certa participação na medida em que o leitor se ajusta à apreen­ são da obra e esta atitude co-determina essencialmente a cons­ tituição da concretização, se à concretização são prescritos, do ponto de vista da expressão mais ou menos adequada da obra, determinados limites de variabilidade, mesmo nesse caso não há necessidade de ela atingir afinal esta expressão e assim a concretização pode depender totalmente das operações subjec­ tivas que a constituem. No pior dos casos, não seria uma con­ cretização da obra em causa mas sim um puro produto de operações subjectivas: a primeira concretização de uma obra inteiramente nova. E isto é precisamente fundamentado pela sua heteronomia ontológica e ainda, sob outro aspecto, pela descontinuidade que existe entre uma concretização e a própria obra. 25

386 Há, porém — como já acima indicámos— , uma outra «vida» da obra literária: a obra — dissemos — «vive» na medida em que ela própria (e não apenas as suas concretizações, como no caso que acabámos de tratar), em conseqüência das concreti­ zações diversamente estruturadas, sofre diferentes transforma­ ções. Como se poderá compreender isto mais de perto? Se não houvesse quaisquer concretizações da obra ela ficaria separada da vida humana concreta como por uma parede opaca. As concretizações constituem, por assim dizer, o elo de ligação entre o leitor e a obra e oferecem-se quando leitores dela se aproximam em atitude cognoscitiva e estética. Uma vez que as concretizações são a forma em que unicamente a obra literária se pode manifestar ao leitor no seu pleno desenvolvimento, de modo que ele a apreende apenas na concretização, e uma vez que, ao mesmo tempo, cada concretização, além dos elementos que exprimem a obra, ainda contém outros que sob pontos de vista diferentes a completam e modificam, uma vez que, final­ mente, a maior parte das concretizações apenas exprime a obra inadequadamente, assim o desenvolvimento de uma mul­ tiplicidade de concretizações exerce uma influência significativa na própria obra literária: esta está sujeita a diferentes trans­ formações em conseqüência das mutações que ocorrem nas concretizações. Isto é, naturalmente, possível apenas sob a con­ dição de justamente os leitores durante a leitura (ou os espec­ tadores durante a representação) assumirem em relação à obra uma atitude determinada, que aliás será a mais freqüente e natural. Verificámos anteriormente que assim como a obra literária provém de operações subjectivas assim pode ser alterada ou até mesmo destruída por meio de operações subjectivas análogas. Tínhamos então em vista, sobretudo, operações em que são determinadas pelo autor (no caso, porventura, de uma «segunda edição») ou pelo leitor, com intenção consciente, p. ex., uma outra conexão de frases ou até várias novas frases na obra. Nestes casos, a obra é alterada de uma maneira consciente ej intencional. A obra literária pode, no entanto, ser também alte­ rada sem que isso aconteça intencionalmente. No caso dè uma apreensão simples da obra numa concretização podemos chegar a uma alteração semelhante da obra quando o leitor — como geralmente acontece — não tem consciência nem das contin­ gências da concretização em causa nem daquilo em que esta de facto e necessàriamente se distingue da obra nem, finalmente, da concretização enquanto tal na sua oposição à própria obra. Em conseqüência disto, ele torna absoluta a concretização res­

387 pectiva, identifica-a com a obra e dirige-se intencionalmente, de maneira ingênua, para a obra assim visada. Atribui-se então à obra tudo o que pertence ao conteúdo da concretização dada. Na verdade, neste modo ingênuo de apreensão da obra as ope­ rações subjectivas da apreensão são realizadas simultaneamente sob o domínio da posição categórica e pura da obra assim intencionalmente visada. Deste modo, a obra não é expurgada prudentemente, numa atitude de captação criticamente cuida­ dosa, de todas as possíveis contaminações mas sim violentada e deturpada. Estas alterações podem ser de vários tipos. As mais radicais são aquelas que se produzem no estrato das unidades de significação porque este é o estrato que maior papel cons­ tituinte desempenha na obra, de modo que as alterações que nele ocorrem originam transformações em quase todos os res­ tantes estratos. As alterações mais frequentes que aí aparecem são as que se baseiam na actualização de uma outra parte do estado potencial de significação, parte diferente da que é pre­ determinada pelo contexto. Podem também atribuir-se aos fone­ mas significativos ou aos signos verbais significações comple­ tamente diferentes das que pertencem à obra e consolidá-las na própria obra \ Contudo, mesmo que as transformações na estruturação da obra não vão tão longe, tornar a concretização absoluta em relação à própria obra não deixa de provocar transformações nesta última. Pois cada concretização — como já acima verificámos — transcende necessàriamente a obra literária. Assim, a própria obra parece ser mais perfeita e de maior con­ teúdo do que efectivamente é. E em conseqüência da inadequação, por pequena que seja, da expressão da obra que ocorre necessà­ riamente na concretização a obra transforma-se imperceptivelmente nas mãos do leitor. Se ainda notarmos que as alterações das concretizações singulares têm tendência a consolidarem-se nas concretizações que se lhes seguem então compreendemos que a obra «vivendo» ela própria nas suas concretizações se altera a si mesma, ao mesmo tempo, em virtude das mutações, se desenvolve nesta ou naquela direcção, adquire particularidades de estilo que de origem eram apenas permitidas pela sua cons­ trução, atravessa crises de mudança de estilo ou volta a cris­ talizar-se, etc. Neste sentido, a própria obra literária «vive», ao

1 Que isto, afinal, é possível funda-se no facto de a relação entre um determinado signo verbal (ou fonema) e uma determinada significação não ser uma correspondência neôessária mas consistir apenas numa concatenação que é relativa a um acto doador de sentido ou a outros factores subjectivos.

388 passo que na «vid a» anteriormente tratada apenas se tratava das suas concretizações. Possui fases da mais soberba evolução e perfeição e também fases em que graças ao empobrecimento das concretizações ela própria se empobrece cada vez mais, etc. Também é possível que a linguagem em que foi escrita a obra, uma vez que já não é uma linguagem «viva», tenha perdido para nós as suas qualidades de manifestação. Há, então, várias rela­ ções objectivas que não chegam a desenvolver-se e, por outro lado, também certos aspectos não se podem pôr à disposição. Em conseqüência disto, as objectividades correspondentes não se podem tornar visíveis no seu aparecimento e, ao mesmo tempo, a obra torna-se mais pobre em muitos momentos deco­ rativos, etc. A obra pode então, por assim dizer, morrer de morte natural na medida em que se torna para os leitores, numa determinada altura, completamente estranha e incompreensível, de modo que eles já não podem penetrar na sua forma própria nem descobrir nela tesouros adormecidos. Se a obra está con­ signada «por escrito» é em princípio sempre possível anular todas as alterações que nela foram provocadas desde que haja pelo menos alguém que as saiba «decifrar». Então a obra já «m orta» pode voltar a viver. Se alguma vez perdermos a signi­ ficação original do texto então é impossível reconstituir a obra original enquanto não refizermos por outra via — porventura através de estudos históricos— a coordenação original entre signo verbal (ou fonema) e significação. Se, no entanto, for bem suce­ dida a «decifração» do texto adequada ao sentido então a obra original ressurge de novo na sua forma própria, todas as trans­ formações posteriores da obra são postas de lado e afastadas da obra por meio de operações subjectivas correspondentes como «falsificações» e «equívocos». Efectivamente, a obra é aqui — contràriamente às opiniões dominantes — de um modo geral de novo alterada, só que estas novas alterações lhe restituem a sua forma original. Todas estas mutações têm, porém, de se manter dentro dos limites característicos de cada obra singular caso se queira conservar a identidade da obra. E aí surge de novo o problema importante e difícil de como deter­ minar estes limites de mutabilidade. Não podemos resolver aqui este problema. Em primeiro lugar, porque a essência da iden­ tidade de um objecto não está de modo algum ainda esclarecida; em segundo lügar, porque — como aliás já sugerimos acima — estes limites só se podem definir a partir da apreensão da essência individual de uma determinada obra, o que ultrapassa o tema das nossas investigações. A afirmação genérica de que as mutações de uma determinada obra têm de ser mantidas

389 dentro de tais limites que a essência individual seja preservada pouco adianta enquanto isto se não tornar evidente nessa obra determinada. Seriam necessárias, neste caso, novas investigações orientadas de maneira completamente diferente que atingiriam o ponto mais agudo na individualidade de urna obra muito-determi­ nada. Para o nosso objectivo basta apenas o facto essencial de a obra literária poder sofrer transformações sem perder a sua identidade. Com isto respondemos de novo em sentido negativo à questão de inicio formulada se a obra literária é ou não um objecto ideal. Resta agora apenas determinar o mais positiva e exactamente possível a posição ôntica da obra literária.

Capítulo 14

Á posição ôntica da obra literária § 65. Introdução

Percorremos um longo caminho. Observámos a obra lite­ rária de diferentes ângulos e em inúmeras particularidades da sua estrutura e mostrámos situações apropriadas para desvelar a sua essência própria e revelá-la claramente na sua heteroge­ neidade frente, por um lado, às vivências psíquicas e, por outro, às objectividades ideais. Cremos ter descoberto nas obras lite­ rárias uma esfera própria de objectividades peculiarmente cons­ truídas que por razões puramente ontológicas, entre outros motivos diferentes, são de extrema importância. Quase no fim do nosso estudo deparam-se-nos os fenómenos da «vida» de uma obra literária e as relações entre esta, as suas concretizações e, por isso mesmo, as operações subjectivas e vivências. Ao encer­ rar este círculo total de problemas parecem-nos surgir de novo alguns perigos que, por assim dizer, já estavam quase vencidos: a obra literária encarada puramente em si mesma pareceu-.nos, primeiro, uma formação inteiramente rígida — que nesta rigidez estaria completamente segura mesmo no que respeita à sua identidade. Separada de todas as suas concretizações e das operações subjectivas da apreensão realizadas pelos leitores pareceu-nos ser, ao mesmo tempo, frente às operações subjec­ tivas algo de tão heterogéneo que qualquer projecto de subjectivismo ou psicologismo nos tinha necessàriamente de parecer logo de princípio inteiramente insustentável. Depois da inclusão das situações que através da leitura da obra são trazidas à luz por muitos leitores a obra parece-nos de novo ameaçada nesta sua identidade e na heterogeneidade soberana perante as vivên­ cias subjectivas. Parece, apesar de todas as diferenças já veri­ ficadas que a distinguem das concretizações, dissolver-se na multiplicidade destas e perder, mercê das estreitas relações de ser e modos de ser entre as concretizações e as vivências sub­ jectivas, a sua heterogeneidade em relação a estas vivências. Eis que de novo se levanta a mesma velha questão: Não é

392 verdade que continua de pé a concepção psicologista da obra literária? Não seria mais certo e mais simples em vez de falar de uma obra literária que em muitas concretizações atinge a sua expressão «reduzir» a obra literária a estas variadas con­ cretizações e considerá-la somente como um ficção teorética, obtida por abstracção, que «na verdade» não existe? O que unicamente existiria seria então a multiplicidade das «concre­ tizações», que nesse caso, naturalmente, já não seriam concre­ tizações de algo idêntico mas somente correlatos intencionais, semelhantes entre si, de multiplicidades de actos correspon­ dentes. E não seria então uma mera logomaquia pretender falar apenas de «correlatos intencionais» e não simplesmente, tal como o faz a concepção psicologista, de «representações»? Por mais aguda e subtil que seja a concepção aqui desenvolvida da obra literária e por mais grosseiro e primitivo que ainda seja o falar de «representações» não se chegará, ao fim e ao cabo, exactamente ao mesmo quando se admite apenas que a obra literária se pode «reduzir» à multiplicidade das pretensas «concretizações» e quando, ao mesmo tempo, se afirma — como de facto fizemos — que cada concretização pertence necessàriamente às vivências subjectivas correspondentes e existe no caso e só no caso de estas vivências existirem? Será possível reduzir a obra literária efectivamente à multiplicidade das concretiza­ ções? Não provam o contrário as inúmeras diferenças que nós apontámos entre a própria obra e as suas concretizações? Poder-nos-iam dar a seguinte resposta: estas diferenças apenas existem no caso de nos atermos de princípio à ideia da obra literária idêntica que nas suas concretizações se exprime — o que, de resto, aconteceu nas observações feitas até aqui. Mas o que nos garante a identidade da obra frente a todas as suas con­ cretizações, em especial quando se concede que as concretiza­ ções singulares divergem muito umas das outras, e que o leitor muitas vezes torna absoluta a sua concretização da obra e nela julga apreender a própria obra? E o que nos garante em especial a identidade da obra quando ela é lida por diferentes leitores, i. é, a sua identidade intersubjectiva? E o que é afinal o idêntico neste caso? Não se torna evidente porventura, ao fim e ao cabo, que o que é idêntico é apenas aquilo que «produz» estas diversas concretizações, i. é, os «sinais» percepcionados no papel durante a leitura? Uma vez que estes «sinais» não podem ser, obvia­ mente, esse algo misterioso a que nós chamamos «obra literária» e com que na atitude estética entramos em contacto, seria

393 talvez mais acertado dizer que durante as leituras singulares somente se originam «concretizações» semelhantes e que é ape­ nas uma ilusão especial, ou melhor, um erro quando nós todos julgamos ler uma e a mesma obra? E finalmente: se a obra literária é apenas uma formação de operações subjectivas que não deve existir de modo ontològicamente autónomo pode per­ guntar-se, nesse caso, como existe a obra quando precisamente não é lida por ninguém. É um hipostasiamento injustificado quando se afirma a sua existência mesmo nestas condições? E se ela existe de qualquer outro modo, o que é que então constitui o seu fundamento ontológico se não forem as opera­ ções subjectivas de consciência? Primeiro que tudo, este complexo de perguntas parece todo ele dizer respeito a um assunto que é unicamente do interesse da ciência da literatura, um assunto, portanto, que não teria significado de maior para as outras ciências, em especial para a filosofia. Para quê então todas estas difíceis investigações e o esforço para evitar a todo o preço a solução psicologista? Contudo, não é isto que se passa. Depara-se-nos aqui uma ques­ tão que é de significação fundamental para a teoria das ciências e em especial para a lógica. Com efeito — como as nossas obser­ vações já mostraram — , a obra científica constitui um caso-limite da «obra literária», em que a diferença mais importante em relação às obras literárias consiste no facto de na obra científica as frases não sofrerem nenhuma modificação quase-judicativa mas serem autênticas frases judicativas. Quer sejam frases judicativas propriamente ditas, quer não, são no entanto sempre frases. Se as frases não são objectividades ideais em sentido rigoroso, como cremos ter mostrado, se provêm de operações subjectivas especiais e esta circunstância leva preci­ samente à dúvida sobre o facto de as frases assim construídas possuírem ou não identidade intersubjectiva e um modo de ser heterogéneo relativamente às operações subjectivas, neste caso as perguntas acima sugeridas referem-se, evidentemente, à obra científica na mesma medida em que se referem à puramente literária. E se não fosse possível afirmar ambas as coisas, com razão, da obra literária então também a obra científica teria de se privar desta identidade e modo de ser e deveria reduzir-se à multiplicidade de «concretizações» mais ou menos diferencia­ das entre si. O que se passaria então com as condições de possibilidade de uma ciência válida no domínio do conhecimento se as produções do trabalho científico fossem unicamente tais

394 «concretizações», se a identidade do sentido das afirmações científicas se pudesse apenas aceitar «cum grano salis» e se cada um de nós durante a leitura de «urna» obra científica tivesse em rigor de lidar com frases, exemplificações, demonstrações, teorias diferentes? Não é este o caminho directo que leva ao cepticismo ou, pelo menos, ao reconhecimento de que urna ciência intersubjectiva é impossível? E que valor teria urna ciência que apenas fosse válida para um único sujeito de conhe­ cimento se não fosse possível uma rigorosa compreensão recí­ proca? Pois por que outro caminho científico que não seja o das frases se poderá realizar uma compreensão entre os sujeitos de conhecimento? Assim, os perigos que aqui temos de combater possuem uma significação incomparavelmente maior do que a que teria um assunto relativamente sem importância da ciência da lite­ ratura. É da máxima e fundamental importância vencer estes perigos. . Por outro lado, é claro: se é possível mostrar que as frases e conexões de frases, apesar do seu ser relativo às operações subjectivas, possuem uma identidade intersubjectiva e têm um modo de ser heterónomo em relação aos actos de consciência que lhes dá a possibilidade de também existirem mesmo quando — uma vez concebidas— não são pensadas nem «lidas» por nenhum sujeito consciente, com isto salva-se a identidade inter­ subjectiva da obra literária como uma formação esquemática por nós revelada. Efectivamente, as frases formam, como mos­ traram as nossas análises, o elemento constitutivo das obras literárias de que dependem ontològicamente todos os restantes estratos da obra excepto o estrato das formações fónico-linguís­ ticas na sua configuração determinada e os elementos dos outros estratos que destas constitutivamente dependem. Se, por­ tanto, a identidade intersubjectiva do estrato das formações fónico-linguísticas não fosse passível de fundamentação então a obra literária seria «em si», se assim se pode dizer, precisamente mais pobre e ainda mais relativa às condições momentâneas de cada leitura do que as nossas análises supõem ter mostrado, mas isto nada poderia alterar da existência e da identidade intersubjectiva da obra literária — e portanto da obra científica. Os problemas que agora temos de resolver são os seguintes: São as frases provenientes de operações subjectivas intersubjectivamente idênticas? Existem mesmo quando não são de modo algum pensadas? Qual é o seu modo de ser e o seu fundamento ôntico do seu ser quando elas existem?

395 § 66. A identidade intersubjectiva da frase e o fundamento ontico do seu ser Na situação problemática em que de momento nos encon­ tramos dois caminhos diferentes se nos abrem pelos quais é possível prosseguir: ou o puramente fenomenológico, que se abstém de qualquer posição ontológica fora da posição da consciência pura, ou o metafísico, que não teme aceitar a exis­ tência também de outras objectividades quando motivos justi­ ficados falam a seu favor e quando não é suficiente a observação puramente fenomenológica. Se quiséssemos percorrer o primeiro caminho teríamos agora de investigar os fenómenos e as ope­ rações subjectivas da compreensão lingüística e intersubjectiva de vários sujeitos conscientes como também a razão desta com­ preensão. Teríamos de mostrar, por outras palavras, como acon­ tece que dois sujeitos de consciências diferentes quando apreen­ dem uma frase apreendam 1 idénticamente o mesmo sentido e como são capazes de chegar a acordo e de adquirir plena certeza de que é este, de facto, o caso. Este caminho levar-nos-ia, porém, às questões mais difíceis da teoria fenomenológica do conheci­ mento, pelo que se tornaria indispensável uma ampla investi­ gação inteiramente nova. Por outro lado, significaria apenas um rodeio uma vez que só a partir da solução dos problemas gnosiológicos se deveria tirar uma conseqüência ôntica ou meta­ física. Não vamos, pois, seguir aqui este caminho embora reco­ nheçamos plenamente a sua legitimidade. Cremos também que o nosso problema é susceptível de ser resolvido directamente se conseguirmos encontrar o fundamento ontológico, objectivo e autónomo da obra literária, ou seja, das frases que nela intervém. Primeiro' que tudo, temos de distinguir entre o fundamento originante da obra literária e o fundamento ôntico do seu subsistir (do seu existir depois da formação). O primeiro já o encontrámos nas operações subjectivas que o autor realiza na formação da obra e que, em primeiro lugar, consistem nas operações construtoras das frases, embora, naturalmente, não se limitem a elas. Agora trata-se apenas daquilo que a operação construtora de frases realiza. Será ela propriamente criadora no sentido autêntico do termo, de modo que produza ex nihilo algo de inteiramente novo, e terá 0 seu produto o mesmo modo de existência que ela própria? Terá de ser negativa a resposta

1 Cf. a este respeito E. Husserl, Méditations Cartésiennes, § 43, p. 77.

396 a estas duas perguntas. E com isto se mostrará o que constitui o fundamento ontológico da obra literária (ou das frases que a compõem) e qual o modo de ser que lhe advém. Os actos subjectivos de consciência em que se processam as operações construtoras das frases são objectividades ontològicamente autó­ nomas. A obra criada e as frases construídas não são objecti­ vidades ontològicamente autónomas mas apenas objectividades puramente intencionais. Mas nem por isso deixa de existir a obra (ou frase) urna vez criada. Existe, contudo, como urna formação ontològicamente heterónoma que tem a origem do seu ser nos actos intencionais do sujeito de consciência criador e, ao mesmo tempo, o fundamento da sua existência em duas objectividades inteiramente heterogéneas: por um lado, nos con­ ceitos ideais e nas qualidades ideais (essencialidades), por outro — como ainda se mostrará— , nos «signos verbais» reais. Aquilo que a operação construtora das frases (ou as múltiplas opera­ ções subjectivas de que resulta a obra literária) pode realizar é — no que toca ao conteúdo de sentido das frases — únicamente a actualização dos elementos de sentido dos conceitos ideais correspondentes e a formação de um todo unitário a partir destas actualizações. Passemos a uma explicação mais exacta: Estabelecemos anteriormente a distinção entre as significa­ ções das palavras e os conceitos ideais. Uma significação de palavra não é mais — dissemos então — do que uma actualização do sentido contido nos conceitos ideais correspondentes que existem de modo ontològicamente autónomo. Em qualquer caso, é certamente actualização apenas de uma parte deste sentido. Esta actualização e a formação de um todo unitário a partir das partes constitutivas realiza-as a operação construtora de frases na medida em que produz as significações das palavras imediatamente com a forma em que elas têm necessàriamente de surgir enquanto partes de uma determinada frase ou de uma determinada conexão de frases. Por esta actualização é, sem dúvida, produzido algo de novo: o conteúdo de sentido da frase ou o conteúdo de sentido de uma conexão de frases. Os con­ ceitos ideais não formam nenhuma parte constitutiva destas formações. Eles são em relação a elas tão transcendentes como as operações subjectivas, que por sua vez também transcendem caindo fora do seu âmbito de domínio. Contudo, eles constituem o fundamento ontológico das frases e o princípio regulador da sua construção. Tendo em vista o seu conteúdo ideal de sentido, o sujeito da consciência selecciona momentos correspondentes neles contidos, efectúa as suas actualizações ontològicamente heterónomas e une-as numa nova totalidade. Ao mesmo tempo

397 que se realiza esta actualização de sentido dá-se uma concreti­ zação intencional dos fonemas significativos e das formações fónico-linguísticas, de modo que a frase inteira (conteúdo de sentido e «expressão» fónico-verbal) é assim intencionalmente criada. Todavia, com a formação intencional das produções fónico-linguísticas passa-se algo de diferente do que sucede na actualização do conteúdo de sentido de urna frase. Voltaremos em breve a este assunto. Antes disso temos ainda de acentuar: o facto de ambos os fundamentos ontológicos da frase ou da obra literária (o fundamento da sua origem nas operações sub­ jectivas e o fundamento do seu subsistir nos conceitos ideais) serem em relação a estas transcendentes e, em especial, o facto de os elementos ideais de sentido dos conceitos apenas servirem ao autor, aquando da actualização, como modelo das partes constitutivas dos conteúdos de sentido actualizados constituem a essência especial do modo de existência ontològicamente heterónomo da obra literária (ou de urna frase singular), essência que se não pode comparar com nada mais. A objectividade, que existe de um modo ontològicamente heterónomo, não tem — dis­ semos — nenhum fundamento ontológico em si própria mas remete para um ser diferente e decerto, em última análise, para um ser ontològicamente autónomo. O acto intencional da cons­ ciência pura não é criador no sentido de poder criar realizações autênticas de essencialidades ideais ou de conceitos 1 ideais num objecto por ele intencionalmente produzido. Se ele fosse criador neste sentido então seria capaz de criar objectividades autênticas reais e, eo ipso, ontològicamente autónomas. Isto, porém, é-lhe vedado. Assim, no caso da construção de uma frase ele pode produzir actualizações de conteúdos ideais de sentido dos con­ ceitos e inseri-las numa nova totalidade (justamente o conteúdo de sentido da frase) e precisamente actualizações a que nenhum conteúdo ideal de sentido, na forma ontológica das realizações, é realmente inerente ou, na verdadeira acepção do termo, imá­ nente, como sucede nas realizações de essencialidades ideais em objectos reais (e, ipso facto, autónomos no seu ser). E do mesmo modo: se através do acto de consciência é criado um objecto puramente intencional (p. ex., uma «coisa») a intenção nele contida não tem a capacidade de produzir nenhuma autêntica realização de qualquer essencialidade ideal. A coisa intencional­ mente criada não «é » — em sentido rigoroso ontològicamente autónomo— , p. ex., «vermelha». Para que o pudesse ser teria

1 Estes últimos não permitem, de modo algum, realizações autênticas.

398 de conter em si realmente uma realização autêntica da essencialidade «vermelho». É precisamente este estar contido real, este estar imánente da realização de urna essencialidade ideal numa objectividade e, por outro lado, esta realização em si mesma que o puro acto de consciência não é capaz de produzir. Este permanece sempre apenas ao nivel do simulado «quase-estar-contido» acima descrito e da quase-realização, que, por um lado, remete para o sic jubeo intencional do sujeito da cons­ ciência e, por outro lado, para a essencialidade ideal correspon­ dente. No mesmo sentido, também cada frase — tomada segundo o seu conteúdo de sentido— se reporta à operação construtora de fráses de um sujeito da consciência de que ela intencional­ mente proveio e, por outro lado, aos conceitos ideais cujas actua­ lizações (mas não realizações), enquanto partes constitutivas do seu sentido global unitário, a determinam. Embora a frase ou a conexão de frases no sentido da auto­ nomia ontológica sejam um nada, embora se não possam encon­ trar no mundo real como uma realidade, não se pode negar que, de qualquer modo, elas têm uma existência. E não é desarrazoado aceitar a sua existência ontològicamente heterónoma mas sim, ao contrário, exigir precisamente do conteúdo de sentido da frase que ele seja real (eventualmente, psíquico) ou então ideal. Ele não pode ser nem uma coisa nem outra. E quem se inclinar e aceitar apenas objectividades autónomas no seu ser, reais ou ideais, tem consequentemente de negar a existência de frases (e, numa conseqüência mais ampla, de conexões de frases, teorias, obras literárias), mas não pode, em caso algum, fazer delas realidades ou idealidades. Tem, no entanto, de pensar que deste modo também nega a possibilidade da ciência e com isto invalida a sua própria tese. Quem admitir a existência onto­ lògicamente heterónoma das frases tem também de aceitar todos os seus fundamentos ontològicamente autónomos e não se pode limitar à aceitação dos actos puros de consciência. Pois assim como uma frase não poderia surgir sem uma operação constru­ tora de frases também não poderia existir de modo ontològi­ camente heterónomo sem os conceitos ideais. Isto é exigido precisamente pela heteronomia ontológica que lhe é própria, por um lado, e pela circunstância de que ela é uma formação de sentido, por outro. A aceitação de conceitos ideais, essencia­ lidades e ideias pode estar em contradição com o chamado «idealismo transcendental», mas o próprio idealismo transcen­ dental é insustentável enquanto se opuser contraditòriamente àquilo cuja aceitação só torna possível uma das descobertas principais e um dos suportes capitais do idealismo transcen­

399 dental, o objecto puramente intencional. Com efeito, sem as essencialidades ideais e as ideias as objectividades puramente intencionais são impossíveis no mesmo sentido em que o são as objectividades reais tomadas no sentido auténtico. Assim como o abandono dos conceitos ideais torna impos­ síveis as significações das palavras, as frases e conexões de frases e a idealização das unidades de significação de graus diferentes é do mesmo modo absurda e contradiz os factos essenciais como a atitude psicologista, assim também, por outro lado, a aceitação dos conceitos ideais não só torna possível o reconhecimento da existência ontològicamente heterónoma das jfrases (e das objectividades por elas projectadas e derivadamente intencionáis) mas também, ao mesmo tempo, a aceitação da identidade intersubjectiva das frases por diversos sujeitos de consciência. Só em virtude dos conteúdos de sentido dos con­ ceitos ideais pode o leitor de uma obra literária reactualizar ¡de modo idêntico o conteúdo de sentido de uma frase dado a esta pelo autor. Se não houvesse quaisquer conceitos ideais nem, além disso, quaisquer qualidades ideais (essencialidades) ou ideias então não só seriam impossíveis as frases ou as objec­ tividades reais e intencionais mas seria também, ao mesmo tempo, impossível atingir uma compreensão lingüística autêntica entre dois sujeitos de consciência em que de ambos os lados se apreendesse o conteúdo de sentido idêntico da frase. Surgem frequentemente equívocos entre duas pessoas que falam e pràticamente muitas vezes não se consegue que ambas apreendam de modo idêntiço as mesmas frases. Contudo, pela existência dos conceitos ideais há, pelo menos em princípio, a possibilidade de cada um dos falantes, pelo recurso a objectividades corres^ pondentes e pela apreensão, pelo menos, de uma parte do con­ teúdo de sentido dos conceitos ideais correspondentes, conseguir a construção ou a reprodução de uma frase de conteúdo de sentido idêntico (como o fizera o outro) e, por isso, a compreensão da frase proferida pelo outro. Cremos, assim, ter afastado o perigo de subjectivismo das obras literárias ou a redução destas obras a multiplicidades de concretizações. Aliás, só com a condição de aceitarmos a exis­ tência dos conceitos ideais. À prova completa da verdade do nosso ponto de vista pertenceria uma teoria dos conceitos ideais e da sua actualização em significações de palavras. Mas isto exigiria um novo e mui amplo estudo. A quem, portanto, parecer perigosa a aceitação de conceitos ideais, a quem se inclinar perante esta aceitação a tomar -uma atitude de cuidadosa expec­ tativa apenas podemos sugerir que veja nesta aceitação uma

400 hipótese sem a qual nem a obra literária, enquanto uma objecti­ vidade idêntica frente a todas as suas concretizações, nem a obra científica e a ciência intersubjectiva nem, finalmente, as múltiplas concretizações de obras literárias se poderão aceitar. E agora, a seguir, umas considerações complementares sobre a formação e a existência do estrato fónico-linguístico da obra literária.

§ 67. A identidade do estrato fónico-linguístico da obra literária As nossas análises anteriores mostraram como o estrato fónico-linguístico desempenha uma função importante na obra literária. É preciso por isso, depois de assegurada a identidade do estrato das unidades de significação, considerar agora se e até que ponto as formações fónico-linguísticas da obra são idên­ ticas em relação a todas as suas concretizações e se no acto de leitura elas se podem legitimar como tais. Aqui poderá aju­ dar-nos a distinção, por nós feita anteriormente, entre o material fónico concreto e o «fonema significativo» como uma forma fónica típica. À obra literária pertencem propriamente, como afirmámos logo no começo da nossa análise, apenas as formas fónico-lin­ guísticas de ordem inferior e superior. A este respeito nada há a alterar do que já foi dito. Põe-se apenas a questão de como são intencionalmente visadas estas formas como inerentes à obra e de como se prova a sua identidade nas múltiplas con­ cretizações desta. A dificuldade que neste caso se verifica reside no facto de, em geral, se não poder afirmar que os fonemas significativos — tomados no sentido de tais formas — são essen­ cialidades ideais ou que têm nelas o seu fundamento ôntico. São indubitàvelmente formados durante o processo de evolução de uma língua e tornam-se depois relativamente fixos, de tal modo que durante períodos de tempo bastante longos são apreendidos ou intencionados como idênticos nas relações lin­ güísticas com base no material fónico concreto (e com isso eles próprios concretizados). Isto refere-se também, numa escala muito mais vasta, às diferentes formações fónico-linguísticas de ordem superior que, especialmente em obras de arte literária autênticas, podem por vezes ter um carácter singular e dever o seu aparecimento ao poder criador do autor. Enquanto apoia­ das em fonemas significativos ordenados de maneira correspon­ dente elas são automáticamente apreensíveis de maneira idên-

401 tica na leitura da obra, sendo para isso apenas necessário que os fonemas significativos sobre os quais essas formações estão estruturadas sejam apreendidos de forma idêntica. Mas o que é que acontece com o fundamento ôntico da identidade de fonemas significativos e com a sua legitimação nas concretizações particulares da obra? Vamos supor que o autor encontra já na língua viva em que escreve a obra uma multiplicidade de fonemas significativos. O pressuposto é, portanto, que a identidade intersubjectiva dos fonemas significativos está assegurada na língua viva *. Através de uma correspondente selecção e ordenação destes fonemas significativos no momento da criação da obra eles são incor­ porados intencionalmente nela pelo autor. Isto realiza-se quer pela simples recitação em voz alta — como acontece, p. ex., nas canções populares — , quer pela fixação escrita. Neste último caso teremos que pressupor novamente uma relação intersubjectiva fixa entre o signo gráfico típico e o fonema significativo cor­ respondente. Ao usar efectivamente formações fónico-linguísticas (que poderão ser criações totalmente novas) — a começar pelos fonemas significativos — o autor decide, por uma intenção deter­ minante, que são precisamente essas e não quaisquer outras formações fónico-linguísticas aquelas que devem integrar a obra em questão. É precisamente esta intenção que as transforma numa parte integrante intencional da obra literária tal como os outros elementos dessa mesma obra. E transforma-as simul­ táneamente nos suportes exteriores das significações das pala­ vras actualizadas na unidade que formam com elas. A obra está, assim, pronta como formação intencional. Mas agora ela deverá — juntamente com o seu estrato fónico-Iinguístico — , enquanto idêntica, continuar a ser a mesma. Isso é possível pelo facto de haver ideias para todos os seres objectivos. Os fonemas sig­ nificativos efectivamente pronunciados são também seres objec­ tivos em que as formas típicas se transformam em concreções autênticas. A intenção que torna os fonemas significativos, no sentido de formas típicas, partes integrantes da obra literária produz simultáneamente uma concretização intencional dos con­ teúdos das correspondentes ideias presentes nos fonemas signi­ ficativos concretamente pronunciados; esta concretização é dife­ rente das ideias em si mesmas e só ontològicamente heterónoma mas tem nessas ideias o seu fundamento ôntico, o que justifica

1 A maneira como isto é possível constitui um dos mais importantes problemas da filosofia da linguagem que não podemos tratar aqui. 26

402 ônticamente perante todas as suas concretizações a identidade dos fonemas significativos que pertencem à obra em questão. Com isto parece estar resolvida uma das nossas dificuldades. Uma outra questão será, porém, a seguinte: como é que os fonemas significativos que foram explicados ônticamente na sua identidade se podem justificar como intersubjectivãmente idên­ ticos quando são lidos por diferentes sujeitos? As palavras efec­ tivamente pronunciadas são criadas desde logo como formações intersubjectivamente idênticas enquanto existir a correspondente comunidade lingüística. Só é preciso, por assim dizer, um sinal que indique aos leitores que precisamente no caso dado se trata dessas e não de quaisquer outras palavras. Estes sinais — que, como se disse, devem ser configurados de forma típica — são os caracteres gráficos. Estes caracteres típicos, porém, têm que se fundar em qualquer material individualizado, p. ex., visual­ mente apreensível. Por outras palavras: desde que não deva ser transmitida apenas «oralmente», e para que nesta transmissão puramente oral não sofra alterações de monta, a obra literária tem que ser escrita. Os «caracteres gráficos», com sinais de emprego de fonemas significativos correspondentes, têm que ser fixados num material real estável e relativamente pouco mutável \ E este material real a que se deu forma adequada constitui, ao lado das operações subjectivas, dos conceitos ideais, das essen­ cialidades e das ideias o terceiro, ainda que mediato, fundamento ôntico da obra literária. Este fundamento não é, naturalmente, suficiente para a existência ontològicamente heterónoma da obra; os outros dois fundamentos ontológicos não só têm que estar presentes como também são mais essenciais para a sua existência, e isto porque a relação das objectividades que neles se apoiam — das frases — com a obra literária é completamente diferente da relação existente entre os caracteres gráficos típicos ou o material gráfico concreto e a obra. Enquanto as frases são partes integrantes autênticas da obra literária, tanto o material gráfico real como os caracteres gráficos nele impressos não formam qualquer elemento da obra literária. São simplesmente — como já dissemos — um sinal regulador para o leitor, que lhe indica quais os fonemas significativos que ele deve concre­ tizar exactamente numa execução real (como na leitura em voz

1 Fonográficamente é possível fixar hoje a obra literária sem «carac­ teres gráficos», portanto sem esses «sinais», por meio de um disco gravado. Mas isto não constitui para nós nenhuma diferença essencial. Também neste caso existe um objecto real — o disco— no qual a obra literária encontra o seu fundamento ôntico mediato.

403 alta) ou apenas numa reconstrução fantasiada (como na leitura silenciosa). Assim, esse sinal como que indica ao leitor o cami­ nho para a apreensão da obra no seu estrato fónico-linguístico. Embora ele seja transcendente quer em relação à obra em si, quer às suas concretizações, e tenha uma relação apenas rela­ tivamente constante com fonemas significativos nós podemos, portanto, ver nele também um fundamento ôntico mediato da obra que possibilita a apreensão das formações fónico-linguísticas idênticas. É claro que esta apreensão só é assegurada pela fixação escrita da obra enquanto «os mesmos» sinais estiverem «ligados» aos mesmos fonemas significativos, o que nem sempre acontece necessàriamente porque esta ligação é puramente casual e rela­ tiva a actos de ligação subjectivos. Se surge uma modificação da «pronúncia» da «mesma» palavra, i. é, se por qualquer motivo se altera o fonema significativo «d a » palavra, este continua normalmente ligado ao mesmo sinal gráfico. A obra é lida e compreendida mas o seu estrato fónico-linguístico, e assim tam­ bém pelo menos alguns dos elementos da obra que dependem constitutivamente desse estrato, sofrem variadas modificações. Em primeiro lugar, estas modificações verificam-se, por assim dizer, apenas no âmbito das concretizações da obra: a obra é, na verdade, falsamente apreendida do ponto de vista fónico-lin­ guístico mas subsiste ainda a possibilidade de uma apreensão adequada pelo recurso ao modo como as palavras em questão «devem » ser pronunciadas. Quando, porém, desaparece nos lei­ tores a consciência de que a «pronúncia» por eles usada é apenas uma particularidade individual que não corresponde à «pronúncia» do autor ou aos fonemas significativos da sua obra então temos um exemplo daquilo a que antes chamámos a «absolutização» da concretização da obra: os leitores lêem a obra, do ponto de vista do estrato fónico-linguístico, de tal modo que supõem intencionalmente os fonemas significativos por eles usados como pertencentes à própria obra e com isto transformam-na no que se refere àquele estrato. E quando eventualmente não for possível averiguar por meios indirectos — p. ex., pela investigação histórica da linguagem— qual deve ser a «pro­ núncia certa» das palavras em questão (é o caso das «línguas mortas») então a obra literária sofre uma constante alteração, a qual, se considerarmos a importante função, já antes referida, do estrato fónico-linguístico na obra literária, pode ser muito radical e atingir em grande escala a harmonia polifónica das qualidades de valor da obra. E embora então a obra permaneça a mesma como formação global a identidade do seu estrato

404 fónico-Iinguístico não fica, porém, tão assegurada pelos seus fundamentos ônticos como acontece em relação ao estrato das unidades de significação através do recurso aos conceitos ideais. Mas também deste último ponto de vista a obra pode estar sujeita a modificações, como já salientámos atrás. Será, talvez, impossível recorrer aos conceitos ideais correspondentes, e da absolutização das concretizações particulares da obra pelo leitor resulta que certas significações das palavras são incorporadas na obra como actualizações de conceitos ideais, outros que não os existentes no estado primitivo da obra. Por muito difícil que seja, porém, determinar em cada caso particular até que ponto podem ir estas variações é óbvio que para que a obra mantenha, apesar das modificações nela introduzidas, a sua identidade a fundamentação do estrato das unidades de significação nos conceitos ideais não só evita ônticamente a subjectivação da obra como também torna possível, pelo menos em princípio, o seu regresso à forma primitiva. Parece-nos que estas considerações serão suficientes para mostrar que a obra literária, apesar do facto incontestável da sua «vida», não pode ser psicologizada.

Capítulo 15

Considerações finais sobre a obra de arte literária § 68. A obra de arte literária e a sua harmonia polifónica de qualidades de valor estético

Para finalizar, falta-nos resolver uma questão referente à obra de arte literária. No decurso das nossas investigações referimo-nos frequentemente às qualidades de valor que se cons­ tituem em cada um dos estratos da obra literária e que na sua totalidade conduzem a uma harmonia polifónica. A harmonia polifónica é precisamente o «aspecto» da obra literária que juntamente com as qualidades metafísicas que nela chegam a revelar-se faz da obra uma obra de arte. Relativamente a este aspecto pode perguntar-se se não será apenas esta harmonia polifónica das qualidades de valor que forma a obra de arte literária, de tal modo que toda a estrutura estratificada por nós apresentada, com todas as suas particularidades, só seria con­ cebida no sentido de um objecto fundamentador que possibi­ litaria a realização da obra de arte literária sem, no entanto, fazer parte dela em qualquer sentido. A conseqüência imediata da resposta afirmativa a esta questão seria que esta harmonia polifónica não seria apenas um estrato próprio que, por assim dizer, atravessasse toda a obra literária mas sim que ela cons­ tituiria um objecto próprio, o único com o qual nós entraríamos em contacto na atitude estética e que eclipsaria totalmente a complicada estruturação estratificada da obra literária, que ape­ nas o fundamenta, bem como a própria obra literária. Então teríamos que voltar ao princípio da nossa análise para pôr a descoberto a essência da obra jiterária assim estruturada. Todo o nosso trabalho até este momento deveria então ser tomado como uma preparação talvez útil mas que, apesar de tudo, não abordou o problema real. Parece-nos que esta concepção é falsa. Uma ligeira análise daquilo que se verifica no nosso contacto com a obra de arte literária chegará para nos convencer disso. Evidentemente que se não existissem nos vários estratos da obra literária quaisquer qualidades de valor estético e se, portanto, não pudesse resultar

406 daí uma harmonia polifónica então a formação cuja anatomia procuramos revelar aqui deixaria de ser uma obra de arte. Mas isso ainda não significa que a harmonia polifónica de qualidades de valor estético seja em si mesma a obra de arte. Ela é apenas aquilo que .faz, da obra literária uma obra de arte (caso se verifique na obra, ao mesmo tempo, uma revelação de quali­ dades metafísicas), mas que se entrelaça com outros elementos da obra numa unidade interior. Ela é algo que resulta tanto das características ou dos conteúdos de cada um dos estratos como também da relacionação íntima desses vários estratos e que se pode intuir como algo que se prende a toda a obra. Ou mais exactamente: tanto os estratos singulares como o todo por eles formado mostram-se-nos — naturalmente através de uma atitude correspondente do le ito r— em variadas qualidades de valor estético que em consonância produzem por si próprias a harmonia polifónica. O facto, porém, de a obra de arte lite­ rária se revelar nestas qualidades de valor não faz ainda desa­ parecer do campo de visão do leitor nenhum dos seus estratos. O que se verifica é precisamente o contrário: aquilo que é dado temáticamente ao leitor, o que atrai principalmente a sua atenção é — como já se viu antes — o estrato dos objectos apresentados, enquanto os outros estratos são co-oferecidos já mais periféri­ camente. As qualidades de valor estético, pelo contrário, cons­ tituem antes algo como uma cintilação luminosa que envolve nos seus raios as objectividades apresentadas e que, ao mesmo tempo, vivida por nós na fruição estética nos rodeia de uma atmosfera especial e sentimentalmente nos embala ou domina e arrebata. O ponto de partida para esta vibração subjectiva que é o correlato subjectivo dessa polifonia vivida de qualidades de valor é, porém, sempre formado por qualquer estrato dado da obra literária, sobretudo pelo estrato das objectividades. Final­ mente, as qualidades de valor estético não podem ser desligadas, nem ôntica nem fenomenalmente, do seu fundamento constitu­ tivo — dos elementos correspondentes de cada um dos estratos. É próprio da sua essência serem características ontològicamente dependentes de alguma coisa que as sustenta. E na verdade elas são, por assim dizer, duplamente não-autónomas porque não se constituem numa essência oculta de alguma coisa ou como qualidades directas de um suporte objectivo, mas são características que têm o seu fundamento constitutivo nas qua­ lidades intuitivamente dadas de uma objectividade. Não se dei­ xam, como dissemos, separar fenomenalmente desta sua infra-estrutura constitutiva. É preciso dar-se ou viver-se sempre uma

407 certa combinação de qualidades objectivas otr -de elementos visíveis para que elas se possam intuitivamente estabelecer da maneira atrás apontada. Assim, a polifonia de qualidades de valor constitui um todo intimamente relacionado com todos os estratos da obra e é precisamente com este todo que nós depa­ ramos na nossa contemplação e fruição estéticas. Este todo é, portanto, o objecto estético: a obra de arte literária. Naturalmente que são possíveis, como acontece em relação a qualquer objectividade, diversas atitudes subjectivas também em relação à obra de arte literária. Assim, pode ler-se urna determinada obra literária de um ponto de vista completamente fora da perspectiva estética: quando, p. ex., lemos urna obra como um psiquiatra que pretende na base da obra determinar a doença psíquica do autor. Numa tal atitude não só não se consideram as qualidades de valor estético como se reprime mesmo a sua fixação na fruição estética que involuntáriamente se faz sentir. Mas se se tratar de urna auténtica e grande obra de arte somos sempre impelidos para a atitude estética, logo pela apreensão temática do estrato objectivo da obra e temos sempre — desde que o pretendamos por quaisquer motivos — que fazer um esforço para nos transportarmos para uma atitude extra-estética, p. ex., puramente gnosiológica. O facto de nestes casos nos fazermos cegos frente às qualidades de valor estético da obra de arte só mostra, no entanto, que não nos adequamos a ela, que em vez de deixar toda a obra de arte exercer a sua influencia sobre nós nos limitamos a extrair dela uma parte que tem nela uma função estética subordinada; mas não prova que com isso nos transpomos da obra de arte literária para outra objectividade que apenas a «fundamentou». As diversas qualidades de valor estético constituem-se — como se depreende das nossas análises — em vários estratos da obra de arte literária; e precisamente por este motivo existe entre elas uma ampla diversidade que lhes dá a possibilidade de formarem umá harmonia polifónica. É evidente que para efeitos da análise se podem separar intencionalmente estas qua­ lidades dos restantes elementos e momentos da obra e se qui­ sermos poderemos falar de um estrato especial da obra. Não podemos, porém, esquecer que precisamente a diversidade das qualidades de valor estético lhes não permite unificarem-se numa esfera assim composta de elementos homogéneos da ma­ neira que apontámos para o caso dos estratos da obra literária. Naturalmente que elas se unem numa harmonia; mas se é certo que esta harmonia tem as suas qualidades formais próprias

403 totalmente novas e «derivadas», por outro lado ela é uma har­ monia polifónica, uma expressão estética — se o termo nos é permitido aqui — da estrutura estratificada da obra literária. Esta polifonia é, ao mesmo tempo, a melhor prova de que o fundamento ôntico das «vozes» individuais desta harmonia se encontra nos estratos singulares da obra de arte literária. Por outro lado, a harmonia das qualidades de valor estético cons­ titui um fio de ligação que relaciona ainda mais intimamente os vários estratos da obra — pela sua própria essência já muito interligados — e revela uma vez mais a uniformidade da obra literária apesar da heterogeneidade de elementos que lhe é própria. Assim fica eliminada a objecção possível à nossa concepção da obra de arte literária. E apesar de tudo há que reconhecer nela uma certa razão de ser se a utilizarmos num outro sentido. Com isso elimina-se também o perigo de um erro ou equívoco que poderia resultar das nossas considerações até este momento. Estabelecemos atrás uma diferença entre a obra literária pura tal como existe em si e independentemente das suas concretiza­ ções e estas mesmas concretizações. Ora, não devemos esquecer que a obra literária considerada neste isolamento é uma for­ mação esquemática na qual, além disso, continuam a existir diversos elementos numa potencialidade específica. Estas duas circunstâncias têm como resultado que pelo menos algumas, se não todas, das qualidades de valor estético e as qualidades metafísicas não chegam a explicitar-se plenamente na obra em si mas permanecem no estado latente da « predeterminação» e «disponibilidade». Só quando a obra de arte literária, numa con­ cretização, alcança a expressão adequada se chega — no caso ideal — à plena realização, a um revelar-se intuitivo de todas estas qualidades. Pode dizer-se que pertence à essência de todas estas qualidades existirem só através da concretização e para as qualidades metafísicas da realização no verdadeiro sentido do term o1. Daqui resulta que: a obra de arte. só constitui um objecto estético no verdadeiro sentido quando alcança a sua expressão numa concretização. Tomada no seu isolamento, fora das concretizações, ela só é uma «obra de arte» no sentido de W. Dohrn no seu livro Die künstlerische Darstellung ais Problem

1 Isto parece à primeira vista uma trivialidade. Mas não se aplica a todas as objectividades — p. ex., não se aplica aos conceitos ideais e às suas actualizações na frase como também se não aplica aos objectos ideais e às ideias.

409 der Ãsthetik. Mas a concretização em si mesma não é o objecto estético mas sim a obra de arte literária considerada exactamente tal como ela tom a1expressão na concretização e nela alcança a plena corporização. *

Assim chegámos ao fim das nossas considerações. Não dei­ xamos de reconhecer que apesar da grande amplitude das nossas análises apenas mostrámos os traços fundamentais, a estrutura básica da obra literária. Serão necessárias outras investigações e estudos complementares nas mais variadas direcções. O nosso esforço será amplamente recompensado se os nossos leitores puderem tomar os resultados a que chegámos neste livro como ponto de partida para investigações posteriores e se puderem chegar não só a prosseguir na investigação mas também a substituir por juízos melhores os possíveis erros que tenhamos cometido. Porque depois dos anos que passámos a elaborar este livro conhecemos, hoje melhor do que no começo da nossa investigação, a infinidade de dificuldades que surgem a quem queira apreender com exactidão a essencialidade específica da obra literária. A obra literária é um verdadeiro milagre. Existe e vive e actua sobre nós e enriquece extraordinàriamente a nossa vida, oferece-nos momentos de deleite e de descida às profun­ dezas abissais do ser e, apesar disso, ela é apenas uma formação ontològicamente heterónoma que, no sentido da autonomia de ser, corresponde a um nada. Se a quisermos apreender teori­ camente ela apresenta-se-nos com uma complexidade e uma polivalência que não podemos deixar de considerar; e, por outro lado, temo-la perante nós, na vivência estética, como uma uni­ dade que só levemente deixa transparecer esta complicada estru­ turação. Tem um ser ontològicamente heterónomo que parece ser completamente passivo e que sofre inoperante todas as ope­ rações que sobre ela realizamos. E, no entanto, através das suas concretizações ela provoca profundas modificações na nossa vida, alarga esta vida e eleva-a acima das banalidades da exis­ tência quotidiana, dá-lhe um fulgor divino — um «nada» e, apesar disso, um mundo maravilhoso em si mesma ainda que a sua criação e existência mais não sejam do que favores nossos.

A PÊN D IC E

SO B R E AS FUNÇÕ ES DA L IN G U A G E M NO ESPECTÁ CU LO T E A T R A L 1 I

§ 1.° No meu livro A Obra de Arte Literária ocupei-me duas vezes do espectáculo teatral. No § 30, onde estabeleci a dis­ tinção entre o texto principal e o texto secundário, e no § 57, em que tratei do espectáculo teatral como um caso-limite da obra de arte literária. O texto principal da peça de teatro é formado pelas palavras pronunciadas pelas personagens; o texto secundário, por sua vez, pelas informações dadas pelo autor para orientação do encenador. Na apresentação da peça em cena estas desaparecem e só na leitura da peça de teatro são real­ mente lidas e desempenham a sua função de apresentação. Mas o espectáculo teatral constitui um caso-limite da obra de arte literária na medida em que nele, além da linguagem, existe um outro meio de apresentação — designadamente os aspectos visuais trazidos e concretizados pelos actores e pelos «cenários», nos quais as coisas e pessoas apresentadas, bem como as suas acções, se tornam visíveis. No âmbito do livro citado não havia, porém, espaço para discutir com mais precisão as diversas e por vezes muito complexas funções das formações lingüísticas que constituem o texto principal. Também nos trinta anos que decorreram desde a publicação do meu livro nem os investiga­ dores da linguagem — como, p. ex., K. Bíihler— nem os filó­ sofos — como, p. ex., Nicolai Hartmann— se ocuparam, tanto quanto eu saiba, deste tema. Também os investigadores da lite­ ratura — p. ex., R. Petsch2— mal se aperceberam dos problemas

1 Este apêndice foi também publicado como -ensaio em Zagadnienia rodzajów literackich (Problemas dos géneros literários), Lódz, 1958, vol. I. J Cf. R. Petsch, Wesen und Formen des Dramas, Halle, 1945.

414 que se põem aqui. Parece, portanto, necessário apontar, ainda que esquemáticamente, as diferentes funções e variações da lin­ guagem (mais exactamente, das formações lingüísticas faladas) no espectáculo teatral *. Será bom começar por lembrar que toda a obra literária é uma formação lingüística bidimensional. Por outro lado, existem nela quatro estratos diferentes embora intimamente relacionados uns com os outros: o dos fonemas significativos e formações e fenómenos fónico-linguísticos de ordem superior, o dos sentidos das frases e das unidades semânticas superiores, o dos aspectos esquematizados e, por fim, o das objectividades apresentadas. Por outro lado, há que distinguir do princípio ao fim da obra a seqüência das partes (capítulos, cenas, actos) e uma estrutura específica e quase-temporal. Quando uma peça de teatro é real­ mente representada no palco surge um espectáculo teatral no qual as personagens e coisas apresentadas, assim como as acções das primeiras, aparecem em imagens visuais, pelo menos em muitos dos seus traços. Por outro lado, as palavras ou frases que constituem o «texto principal» são mostradas aos ouvintes pelas personagens interpretadas na sua forma fónica concreta ao serem realmente pronunciadas pelos actores. O facto fundamental que dá acesso à problemática da lin­ guagem no espectáculo teatral é o de que todo o texto principal é um elemento do mundo apresentado no espectáculo teatral e especialmente que o pronunciar de cada uma das palavras ou frases constitui um fenómeno que se processa no mundo apre­ sentado e principalmente uma parte do comportamento da personagem interpretada. Mas a função das falas pronunciadas na peça representada não se esgota com isso pois ela consiste, ao mesmo tempo, no exercício da função de apresentação lin­ güística — que se ramifica ainda de modo diverso — e como tal tem que estar em estreita ligação com os outros meios de

1 N a Polônia apareceram nos últimos anos dois trabalhos que se ocupam de problemas relacionados com este, nomeadamente: S. Skwarczynska, O rozwoju tworzywa slownego i jego form podawczych w dramacie (Sobre a evolução da matéria verbal e da sua forma de declamação no drama), 1951; e I. Slawinska, Problematyka badan nad jezykiem dramatu (A problemática de uma investigação da linguagem no dram a), Roczniki Humanistyczne, t. IV, Lublin, 1953-1955. Estes dois trabalhos contêm alguns resultados notáveis.

415 apresentação que interferem no espectáculo teatral — ou seja, com os aspectos concretos transmitidos pelos actores \ § 2 .° Antes de nos ocuparmos mais de perto de cada uma das funções das formações lingüísticas no espectáculo teatral temos sobretudo que tomar consciência da composição, por fac­ tores diversos, do mundo apresentado nesse espectáculo. Ele abarca três domínios diferentes que no que respeita ao seu modo-de-ser e à sua condição só em certa medida são partes integrantes homogéneas do mesmo mundo, mas que quanto à sua base de apresentação ou aos seus meios se devem diferen­ ciar. São eles: 1) Objectividades (coisas, pessoas, fenómenos) que são mos­ tradas ao espectador exclusivamente pela via da percepção2, através da acção dos actores ou dos cenários. 2) Objectividades cuja apresentação se faz por uma via dupla: primeiramente, por via da percepção (do mesmo modo que as objectividades indicadas na alínea anterior); em segundo lugar, porém, através de uma forma de apresentação lingüística na medida em que se fala delas no palco. A forma de apresen­ tação lingüística constitui aqui um complemento da forma visível dada na percepção, especialmente no que se refere aos estados psíquicos das personagens interpretadas. Assim, terá que existir uma concordância entre estas duas formas de apresentação para que não resultem objectividades contraditórias, embora nas obras de arte literária sejam, naturalmente, permitidas certas «liberdades poéticas». 3) Objectividades cuja apresentação se faz exclusivamente por meios lingüísticos, que portanto não são mostradas «no p a lc o »3 embora se fale delas no texto principal. À primeira vista elas parecem estar, quanto ao modo de apresentação, exac-

1 Não se deve esquecer que os actores reais (homens e «acessórios») não constituem uma parte integrante do espectáculo teatral. São simples­ mente os fundamentos ontológicos psicofísicos da peça em cena, cujas partes integrantes são apenas as personagens nela interpretadas: dramatis personae. 2 É com certas reservas que uso aqui o termo «percepção», que deve ser entendido apenas como uma abreviatura cómoda. Não posso, porém, tratar aqui mais desenvolvidamente dos contextos em que o problema se pode situar. 3 Uso a expressão entre aspas porque se trata aqui mais precisamente do espaço apresentado por meio do palco. A expressão «no palco» é, porém, mais curta e mais cómoda.

416 tamente ao mesmo nível daquelas objectividades de que se fala na obra literária pura. Mas, vista a questão com mais exactidão a forma do seu aparecimento é um pouco diferente na medida em que pelo menos algumas delas têm relações diversas com as objectividades mostradas no palco (pertencem ao ambiente mais vasto destas últimas) e alcançam com isso um carácter de realidade mais sugestivo do que o dos objectos apresentados na obra literária pura. Se também neste caso se mantiver a uniformidade do mundo apresentado então a forma de apre­ sentação lingüística das objectividades ausentes do palco terá também que corresponder àquelas que são dadas através da percepção. Um caso especial do grupo de objectos apresentados aqui considerado pode ser constituído por todos os objectos «passados» em relação aos objectos mostrados no momento «presente» (p. ex., acontecimentos ou fenómenos passados, mas também coisas e pessoas que «outrora» existiram). Entre estes pode, por sua vez, delimitar-se ainda um outro grupo especial de objectos «passados» [mas que podem, ao mesmo tempo, contar-se entre as objectividades mencionadas na alínea 2)], que são precisamente aqueles que pertencem ao passado dos objectos que «agora» surgem no palco e que, no entanto, lhes são idên­ ticos. Quando, p. ex., no Rosmersholm, de Ibsen, seguimos os destinos, «presentes» de Rosmer e Rebeka West, e com isso vamos conhecendo cada vez mais coisas novas sobre o passado destas duas pessoas, nós sentimos como esse passado se funde cada vez mais com os seus destinos «actuais» e como ele começa mesmo a dominar os eventos que se desenrolam agora até forçar, por fim, a decisão trágica. Apresentado só lingüísti­ camente este passado alcança no fim trágico de Rosmer e Rebeka quase a mesma auto-revelação que a decisão dos últimos, rea­ lizada imediatamente «no palco», de irem juntos ao encontro da morte. A própria morte, por sua vez, só é definida intencio­ nalmente através das falas das duas personagens interpretadas, mas de tal modo que ela parece ser, para o espectador, tão real e natural como as últimas palavras das pessoas que a ela se entregam. § 3.° As diferentes funções das palavras «realmente» pro­ nunciadas estão em relação com os três grupos de objectividades apresentadas que distinguimos. Há que enumerar primeiramente, em geral, as funções que, por assim dizer, se concretizam «aden­ tro» do mundo apresentado; depois, trataremos daquelas outras funções que as palavras pronunciadas «no palco» exercem em relação ao público reunido na sala do teatro.

417 Interessa aqui sobretudo a função de apresentação1 das objectividades intencionalmente visadas, pela sua significação ou pelo seu sentido, nas palavras pronunciadas. Consoante o tipo de formação lingüística pronunciada num determinado mo­ mento assim pode tratar-se de objectos nominalmente projectados (coisas, pessoas, fenómenos, eventos) ou de relações objec­ tivas determinadas ao nível das frases que, por sua vez, servem para apresentar as coisas e os homens. Esta forma de apresen­ tação tanto pode realizar-se de maneira puramente «conceptual», portanto — como disse Husserl algures — «signitiva», como processar-se de maneira que a apresentação dos objectos intencio* nados se faz em aspectos evocados imaginativamente\ Esta função de apresentação é, na verdade, apenas um complemento

1 Como se pode ver pelo que se segue, uso aqui uma distinção entre a função de apresentação, de expressão, de comunicação e de «influência» das formações lingüísticas (palavras, frases, períodos). O leitor que não conheça bem a história desta distinção pensará provàvelmente desde logo em K. Bühler, cuja Sprachtheorie (1934) encontrou uma aceitação relati­ vamente grande, sobretudo entre os linguistas. N a verdade, porém, tais distinções remontam, pelo menos, já a K. Twardowski ( Zur Lehre von Inhalt und Gegenstcind der Vorstellungen, 1894). Mais tarde, E. Husserl ocupou-se detidamente, nas Logischen Untersuchungen (1901), de «expressão» (Ausdruck) e «notificação» (Kundgabe) — numa terminologia posterior «sig­ nificação» (Bedeutung) e «expressão» (Ausdruck) — , depois do que K. Büh­ ler, no artigo Kritische Musterung der neueren Theorien des Satzes (1920), distinguiu três espécies fundamentais de frases [frases notificativas (Kundgabesãtze), frases libertadoras (Auslõsungssátze) e frases apresentativas ( Darstellungssàtze) ]. N o meu livro A Obra de Arte Literária não só polemi­ zei contra algumas afirmações de Bühler (e especialmente contra o seu con­ ceito de apresentação) mas também analisei com mais precisão o conceito de «expressão» (Ausdruck) e o de «apresentação» (Darstellung). Em 1934 distinguiu então K. Bühler, na sua Sprachtheorie, as três funções de expres­ são, de apresentação e de apelo. N o meu trabalho Über die Übersetzung (1956) eu distingui, finalmente, em vez destas três, cinco funções diferentes da linguagem, das quais utilizo aqui as quatro acima mencionadas. 1 Em relação a isto devemos tomar consciência de que os «aspectos» inerentes ao espectáculo teatral são de dois tipos: 1. aqueles que são postos perante o espectador sob forma visual concreta, através dos actores que representam no palco, e através dos quais as pessoas e coisas apresentadas aparecem ao espectador quase perceptivamente; 2. aqueles que são postos à disposição através das formações lingüísticas pertencentes ao texto prin­ cipal e que são apenas sugeridos ao espectador. Este pode concretizá-los mais ou menos vivamente, mas só na forma de uma visualização imagina­ tiva. Como os objectos intuídos através de aspectos deste segundo tipo estão em diferentes relações ontológicas com os que são apresentados sob forma de aparecimento visível a sua intuição pode atingir um grau de vivacidade que só muito raramente se encontra em obras puramente lite' r árias. 27

418 da constituição do mundo apresentado no espectáculo teatral visto qué o principal contributo da apresentação é aqui alcan­ çado através dos aspectos concretos dos objectos mostrados no palco (mas no espaço meramente apresentado). Os elementos meramente complementares do mundo apresentado podem, no entanto, ser tão importantes que sem eles o espectáculo teatral seria não só incompreensível mas também privado dos momentos mais essenciais à acção dramática. A pantomima ou o filme mudo mostram bem como é difícil no espectáculo dramático prescindir deste modo de apresentação lingüística e apesar disso oferecer um todo artística e objectivamente perfeito. Contudo, a função e a participação desta apresentação lingüística na constituição do mundo apresentado é ainda muito variada nos diferentes espectáculos teatrais e seria interessante fazer uma investigação neste sentido sobre diferentes obras (e autores) para determinar mais exactamente o tipo do processo de apre­ sentação nelas utilizado. A segunda função essencisd das palavras pronunciadas é a expressão das vivências e dos diferentes estados e acontecimentos psíquicos da pessoa que fala num determinado momento. Esta expressão, que se realiza através das qualidades de manifes­ tação 1 do tom do discurso, insere-se na função geral de expressão que se exerce pelos gestos e mímica fisionômica da pessoa que fala. É, no fundo, uma parte integrante da função geral de expressão e, assim, um processo que tem lugár adentro do mundo apresentado embora contribua ao mesmo tempo para a constituição desse mundo nalgumas das suas partes integrantes. Nesta medida, existem entre esta expressão lingüística e as outras funções de expressão várias relações mais óu menos íntimas consoante a unidade do mundo apresentado. As palavras e frases pronunciadas pelas personagens inter­ pretadas exercem, em terceiro lugar, a função da comunicação. E, de facto, aquilo que é dito num determinado momento pelá personagem em questão é comunicado àqueloutra personagem a quem essas palavras são dirigidas. O discurso vivo — desde que utilizado na sua função natural— é sempre dirigido a outrem (aos nossos semelhantes). Os chamàdos «monólogos» constituem excepções e a sua função está ainda por investigar nesta perspectiva. Mas foram reduzidos ao mínimo no drama moderno precisamente porque são considerados como privados da função de comunicação.

' Cf. A Obra de Arte Literária, § 13.

419 Na conversação entre, duas pessoas, contudo, só muito rara­ mente estamos perante uma mera comunicação; trata-se de algo com uma importância vital muito maior, designadamente de uma influência sobre aquele a quem é dirigido o discurso. Em todos os conflitos «dramáticos» que se desenrolam no mundo apresentado no espectáculo teatral o discurso dirigido a alguém é uma formcf. de acção do sujeito falante e só tem, no fund.o, uma importância real nos acontecimentos apresentados na peça quando impulsiona realmente de maneira, essencial o progresso da acção \ Mais adiante investigaremos quais as formas que adquire a palavra falada como factor impulsionador da acção. De momento queremos apenas acentuar que esta função da influência sobre o interlocutor e sobre as outras personagens envolvidas na acção global da obra é um dos principais resul­ tados das falas das personagens apresentadas. § 4.° As quatrç) funções do discurso no espectáculo teatral que acabámos de indicar constituem, porém, apenas as funções exercidas pela palavra falada para o mundo apresentado e dentro dele. Ora, estas não são ainda todas as funções da lin­ guagem falada no espectáculo teatral. Porque não podemos esquecer que este espectáculo é apresentado a um público e destinado a ele e que as palavras pronunciadas pelas personagens apresentadas têm ainda uma função (função mais uma vez de natureza diferente) a desempenhar em relação a esse público. E aqui abre-se uma nova perspectiva de observação, que aliás já foi tratada mais de uma vez na literatura2. Limito-me aqui às verificações indispensáveis. O teatro não significa apenas o palco mas também a sala e o público que a ocupa; O mundo apresentado e tornado visível

1 S. Skwarczynska distingue, entre outras, â «função dramática» da linguagem no «dram a». Tanto quanto eu posso entender, constitui esta função um caso especial do facto de as palavras pronunciadas na peça formarem uma articulação no acontecer dramático e de, portanto, a fala ser um fenómeno que se processa no mundo apresentado. Só a partir desta consideração se pode compreender que as palavras pronunciadas — como diz S. Skwarczynska — impulsionem a acção. Além disso, S. Skwarczynska distingue ainda a função da «caracterização mediata» e «im ediata» das personagens que entram na peça. Trata-se, aqui, em parte da expressão, em parte da apresentação das qualidades das personagens através do sen­ tido do discurso, em parte ainda de conclusões que o espectador tira sobre as qualidades mórais dà personágem que fala, a partir de qualidades características do discurso. 2 Deste aspecto da representação teatral ocupou-se especialmente Waldemar Conrad num estudo, publicado ,na «Zeitschrift für Ãsthetik und allgemeine Kunstwissenschaft» (cf. vol. V I).

420 no espectáculo teatral constitui uma estranha superstrutura intencional e uma reinterpretação daquilo que acontece em realidade durante a representação «no palco». O palco real está, naturalmente, durante a «representação» (durante os vários «actos») sempre «aberto» para o público que se encontra na sala (o paño «sobe»). Mas o espaço apresentado «no palco» (em certa medida fictício) no qual se desenrola a acção da peça, bem como os fenómenos e acontecimentos que têm lugar no decorrer desta acção, podem ser tratados e estruturados de maneira dupla. Ou como se tudo isso acontecesse num mundo «aberto» para o público ou então como se tudo se passasse num mundo «fechado» ao público. No primeiro caso podem ainda distinguir-se duas variantes da forma do mundo apresen­ tado e do modo como ele é mostrado ao público (ou seja, como os actores representam e como se constroem os cenários). E esta dupla variante depende de o «estar aberto» do palco (ou do espaço apresentado) ser concebido e destinado ao público en­ quanto multidão de meros «espectadores» ou enquanto multidão de homens que não deverão ser já meros espectadores mas, pelo menos até um certo ponto, participantes daquilo que acon­ tece «no palco». O primeiro caso verifica-se, p. ex., nos dramas pseudoclássicos ou também nos dramas de Shakespeare, preci­ samente naquele modo de representar dos actores em que se dirigem claramente ao público e dão, por assim dizer, «exibi­ ções», concertos para este público sem, ao mesmo tempo, aban­ donarem completamente a atitude de «realmente» dirigirem as suas falas a uma outra personagem interpretada. O segundo casò encontramo-lo nas antigas tragédias gregas, que eram uma espécie de mistérios em que o público participava. Mas só o moderno teatro «naturalista» — que se destina a uma massa de «espectadores» que devem apreciar a peça numa atitude estética— constrói a ficção do palco «fechado», por­ tanto um palco que é na realidade aberto mas no qual sobre­ tudo se representa como se não faltasse a «quarta parede» e como se nenhum espectador assistisse aos acontecimentos repre­ sentados «no palco». O actor deve precisamente causar a impres­ são de não ser visto e ouvido por mais ninguém além das per­ sonagens que com ele se situam no mundo apresentado e com as quais e para as quais ele fala. E todo o mundo apresentado e tudo o que nele acontece são organizados como se não hou­ vesse nenhum observador de fora (i. é, de um lugar que fica fora do mundo apresentado): esse mundo deverá, pois, ser tanto quanto possível «natural» e tudo deve acontecer nele o mais «naturalmente» possível. Todo este modo de composição do

421 mundo apresentado e este modo de representar dos actores são, porém, apesar de tudo traçados segundo o espectador (mas um espectador que se considera estar ausente). Porque existe a opi­ nião de que a arte mais perfeita é a que oferece ao espectador a «natureza» na sua nudez e no seu carácter inalterável quando em presença dos espectadores. Qualquer modificação do modo de comportamento de cada uma das personagens ou do decorrer dos acontecimentos que fosse intentada para provocar no espec­ tador um determinado «efeito» era sentida como «artificialismo», «afectação», «falsificação» da «natureza». Assim, há que eliminar o espectador enquanto considerado como alguém de quem as personagens interpretadas no drama tenham conhecimento e que levem em consideração no seu comportamento e nas suas decisões porque assim ele constituiria um factor de perturbação do mundo apresentado. Daí que as personagens interpretadas (e consequentemente o próprio actor) se devam comportar como se não considerassem a existência de mais ninguém além das restantes personagens interpretadas. A «quarta parede» fecha-se, assim, ficticiamente. E só quando tudo se comportar como aconteceria realmente por detrás daquela quarta parede esta pode, por assim dizer, tornar-se transparente: é a mais perfeita arte do actuar-sobre-alguém através da aparência do não-querer-actuar!. Também o chamado drama «impressionista» é, no fundo, «naturalista», somente com a diferença de que a natureza simulada é constituída por «impressões», por estados de espírito que todas as personagens que entram numa cena vivem e fruem. Seja qual for o tipo de palco «aberto» ou aparentemente «fechado» que encontremos num espectáculo (ou «exibição») teatral, às funções do discurso apresentado atrás mencionadas há sempre que acrescentar aquelas que se relacionam com as pessoas (particularmente os «espectadores») que se encontram na sala do teatro. E estas são funções de comunicação e influên­ cia orientadas em sentido diferente das discutidas no caso ante­ rior. Consoante o tipo de palco «aberto» ou (aparentemente) «fechado» de que se trata na respectiva peça de teatro assim estas novas funções se processam de maneira diferente e inter­ ferem, para o modificar em maior ou menor escala, no processo das funções das próprias palavras na sua relação com determi­ nados elementos do mundo apresentado. De acordo com o ideal de um palco «fechado» elas devem, na verdade, processar-se de modo a que não provoquem qualquer perturbação no desem-

1 Era este, p. ex., o ideal do teatro de Stanislawski.

22 . nho destas últimas funções. Mas talvez se possa afirmar que uunca se consegue evitar completamente esta perturbação, ou melhor, que se isso se conseguisse realmente não haveria qual­ quer função de comunicação e de influência em relação aos espectadores. De um ponto de vista puramente empírico talvez se pudesse aceitar que uma eliminação total da perturbação ou, mais geralmente, da transformação do processo «natural» do falar e da palavra pronunciada, através das funções que visam o espectador, está pràticamente fora de causa. Quando, porém, ela é reduzida ao mínimo possível — p. ex., no drama naturalista, digamos no Ibsen da fase fin a l— isso não quer dizer que então a função de comunicação ou de influência dirigida ao espectador seja também reduzida a um mínimo ou mesmo a zero. Porque ela exerce-se sobretudo através do facto de o actor — ainda que não a personagem representada— se adaptar mais ou menos ao espectador, não procurando apenas pôr perante ele o dis­ curso interpretado, e assim comunicar-lhe o seu sentido, mas desejando também actuar sobre esse mesmo espectador. Ora o que acontece é que o tipo de influência neste caso é comple­ tamente diferente dò da palavra falada, dentro do mundo apre­ sentado, sobre a outra persoriagem interpretada. Pois, desde que não se trate de um mistério esta influência sobre o espec­ tador consiste em despertar nelé a vivência estética na emoção provocada pelos destinos humanos apresentados e não numa resposta, lingüística ou outra, à palavra dirigida pela personagem que fala. E, de acordo com os princípios do naturalismo, a maior influência estética sobre o espectador deve verificar-se precisamente quando o actor age como se não desse pela pre­ sença do espectador; no entanto, ele dá por ela e tem de contar com essa presença embora os outros não lho notem. Ora, o grande problema da contextura da palavra falada na arte teatral consiste em qué ela desempenhe perfeita e har­ mónicamente todas as funções mencionadas, e isso nas tão diferentes situações (no mundo apresentado e também na sala do teatro) em que é pronunciada e ainda nas diversas variações dos objectivos que a arte dò teatro se propõe alcançar em diferentes épocas, estilos e tipos de espectáculo teatral.

II Desejaria agora tratar um pouco mais de perto os casos e as variantes específicos das funções é formas em que surge a palavra falada (ou o discurso apresentado) no espectáculo teatral.

423 § 1.° Já chegámos à conclusão de que as palavras pronun­ ciadas pela personagem interpretada numa situação significam uma acção 1 e constituem, assim, um elo de ligaçãò na acção dramática e especialmente no conflito entre os homens (inter­ pretados). E isso acontece primeiramente porque elas são pro­ nunciadas num determinado lugar do espaço apresentado (p. ex., no quarto dos amantes), num determinado momento (do tempo apresentado) e numa determinada fase de desenvolvimento da acção apresentada, abstraindo de certo modo de que isto tam­ bém se passa no espaço real do palco real. E, em segundo lugar, porque elas são pronunciadas precisamente desta maneira e não de outra e têm precisamente um conteúdo que corresponde ao que elas têm na realidade. Tudo isto é essencial à palavra falada. Pois só disto resulta que ela seja dirigida a uma outra perso­ nagem determinada e a influencie de uma determinada maneira, pelo que se pretende precisamente alcançar uma determinada progressão no evoluir da acção do «drama». Sem a realidade deste ser-pronunciada não só a acção que se desenvolve na peça se veria privada de um elo de ligação mas até poderia evoluir de maneira diferente. Isto relaciona-se com o facto de a realidade do ser-pronunciada poder ter variados efeitos consoante o modo como as palavras pronunciadas exercem as suas funções dentro do mundo apresentado. Este facto não depende, porém, apenas da qualidade das palavras utilizadas mas também da parte inte­ grante que elas constituem no comportamento global da perso­ nagem e da função que elas nele desempenham. Mas, considerando esta última circunstância, as palavras de cada uma das personagens podem assumir formas diversas. Ou, de um outro ponto de vista: se lhes é dada uma forma determinada põe-se a questão de saber qual será a relação dessas palavras, enquanto articulações do modo de comporta­ mento da personagem que fala, com esse comportamento global: estão elas integradas nele ou constituem nele apenas um factor relativamente desligado ou mesmo algo que é nele completa­ mente acidental? Estarão elas em adequação com os outros modos de comportamento da personagem em questão de modo a existir entre ambos uma concordância ou um contraste mais

1 Uma outra questão é, porém, a de se saber se esta acção «significa» sempre alguma coisa, i. é, desempenha uma função mais ou menos impor­ tante na acção dramática. Esta é realmente a questão fundamental da composição dramática. Num «b o m » drama toda. a palavra que seja uma acção sem «significado» é dispensável e por isso, quando apesar de tudo exista, um erro de composição.

424 ou menos pronunciado (quando, p. ex., um indivíduo calmo e bem educado se põe a falar em termos ásperos e brutais com alguém que, por assim dizer, lhe não fez nada)? Em ambos os casos, mas especialmente em casos de contraste, há que per­ guntar ainda se e em que medida o aflorar de um tal contraste c preparado e justificado pela situação geral ou pelas fases anteriores da acção ou se surge como algo que não se pode motivar objectivamente no mundo apresentado. E neste último caso: será isto apenas o resultado de um erro de composição ou pode explicar-se pela intenção de influenciar os espectadores de maneira correspondente e é próprio de um determinado estilo de composição da obra como obra de arte de tipo especial? Podemos, porém, observar de outra perspectiva a relação entre o comportamento geral da personagem interpretada e as pala­ vras por ela pronunciadas numa dada situação. A perspectiva é esta: esse comportamento (na mímica, nos movimentos, etc.), na forma que toma numa dada representação por um actor, harmoniza-se com as palavras pronunciadas, ajusta-se a elas ou leva a qualquer espécie de conflito com elas? Pergunta-se, por outras palavras, se a representação do actor (intencionalmente ou não) é boa ou má. As palavras pronunciadas, designadamente do modo con­ creto como o são na representação da peça, podem desempenhar a sua função de expressão mais ou menos eficazmente. Isto pode, aliás, depender do tom da pronúncia1 (o que compete em grande parte ao actor), mas este tom depende, por seu turno (pelo menos em parte), tanto do conteúdo da palavra pronunciada como da construção sintáctica da respectiva for­ mação lingüística2. Teríamos que afastar-nos muito do nosso terna principal se quiséssemos entrar aqui em pormenores qüanto a este ponto. Teríamos, na verdade, que investigar todo um vasto campo de fenómenos lingüísticos. Aos aspectos gerais sob os quais a função de expressão tem de ser considerada pertence, porém, entre outras a questão de saber se a «expressão» é «sincera», «honesta», «verdadeira» ou se, pelo contrário, é «enganadora», «insincera»; ou se ela pelo menos, intencional­ mente ou não, esconde de algum modo alguma coisa que não

1 Este tom pode ser determinado pelo texto do actor desde que seja possível apercebermo-nos, através do contexto, de como ele deve ser. 2 A sensibilidade do poeta deve indicar-lhe em que form a sintáctica e com que palavras algo deve ser dito quando aquilo que se diz deva exprimir alguma coisa que é ao mesmo tempo muito precisa e, no fundo, inefável.

425 deva ser dada a conhecer. E neste contexto ainda, se ela é «natural» ou «artificial» e se intencionalmente (na intenção da personagem interpretada ou do actor) ou sem intenção (porque, digamos, o actor tem um fracasso), etc. A palavra falada pode, como se disse, ser uma forma de actuar sobre aqueles a quem é dirigida e por vezes também sobre aqueles que são meras testemunhas do diálogo. Em todo o diálogo se verifica uma forma qualquer de influência, quanto mais não seja ao provocarem-se no nosso interlocutor diversas vivências de compreensão. Há, porém, que distinguir várias formas do «diálogo», das quais desejamos comparar aqui apenas duas sumàriamente. Uma delas, que não se aplica pràticamente ao caso do «dram a» — mais exactamente, do espectáculo tea­ tra l— , é constituída como que por um diálogo «calm o» (muitas vezes puramente teórico) no qual os interlocutores apenas comu­ nicam um ao outro certos factos que não provocam neles reacções emocionais. A outra consiste num diálogo que não é mais do que uma forma de conflito, mesmo de luta, entre os interlo­ cutores. Nestes casos, ou se trata apenas de converter o inter­ locutor a uma convicção (teórica ou prática) que o próprio sujeito que fala defende ou então de o levar, por este ou por aquele meio (p. ex., provocando certos sentimentos, desejos ou actos de vontade), a qualquer modo de comportamento e espe­ cialmente de acção desejados pela personagem que fala. A esse modo de comportamento desejado pode também corresponder o retrair-se perante uma acção. Fala-se, neste caso, de um diálogo «activo». O diálogo «activo» parece, de resto, ser a forma «nor­ mal» do diálogo no espectáculo teatral. Nele se consegue a verdadeira influência do sujeito que fala sobre o seu interlocutor. Essa influência sobre o interlocutor pode, porém, resultar ou do conteúdo do discurso ou do modo e especialmente do tom como as coisas são ditas ou, finalmente, de ambos. Quanto ao conteúdo do discurso, ele tanto pode influenciar o nosso interlocutor através daquilo a que se refere ou daquilo que nele é especificado do ponto de vista da significação como tam­ bém através do modo como ele o faz. Aquilo que comunicamos aos outros, aquilo de que falamos ou pode referir-se a um facto no mundo exterior a ambos os interlocutores ou pode ser alguma coisa que se passa no próprio sujeito falante (ou também naquele a quem se dirige a fala) — p. ex., uma decisão de que damos conhecimento ao outro ou um certo sentimento que nutri­ mos, etc. Seja como for, para que o outro reaja de qualquer modo terá que tratar-se de algo que lhe não seja completamente indiferente mas sim que tenha para ele uma função qualquer,

426 uma importância e um significado; de outro modo ele perma­ necerá «frio ». Mas se isso deve provocar nele úma reacção — e designadamente da maneira intentada ou, pelo menos, de algum modo desejada pelo sujeito falante— então a forma da apresentação, ou seja, a maneira como isso se «traduz em pala­ vras» não poderá ser completamente arbitrária. Pode, p. ex., ser dita clara ou obscuramente, de modo confuso ou simples, unívoca ou equívoca, directa ou veladamente. Cada um destes modos de falar se caracteriza, digamos, por uma eficácia pró­ pria. Isto não significa, porém, que ele tenha que provocar sobre os outros sempre o mesmo tipo de influência porque numerosas modificações dependem da pessoa que as palavras pronunciadas visam e especialmente do estado em que o nosso interlocutor se encontra nesse momento determinado. Até as palavras em si mesmas mais «claras» podem ser para o outro interlocutor obscuras — especialmente em relação à intenção que com elas se pretende exprim ir— e assim não provocar nele a resposta lingüística ou simplesmente emocional que se esperava. Mas também a conjuntura em que as palavras são pronunciadas numa formulação determinada pode modificar essencialmente a sua «verdadeira» influência. O poeta tem, pois, que contar com todas estas circunstâncias e dar uma forma adequada às pala­ vras do sujeito falante. O tipo e o grau de influência dependem, talvez, igualmente do modo como as palavras são pronunciadas. «C est le ton qui fait la chanson» — já se disse há muito tempo e com razão. Poderia talvez objectar-se que o tom exprime sempre apenas a disposição psíquica de quem fala e por isso não entra em linha de conta quando se trata da influência sobre o interpelado. No entanto, ficamos indecisos sobre Se o tom consegue sempre realmente dár expressão a essa disposição. Em segundo lugar, haveria ainda que considerar se não existirão variações tais do tom que não se destinem, ou não em primeiro lugar, a exprimir algo da vida psíquica daquele que fala. Para responder com segurança precisaríamos de dispor de uma lista completa das possíveis variaçõès do «tom » do discurso, o que, tanto quanto eu saiba, ainda ninguém fez. Aqui só posso apontar também alguns exemplos. Assim, podemos falar num tom «exaltado» ou «calm o». Pode falar-se num tom «suave» ou «áspero», «de desconsideração» ou «atencioso», «condescendente» e «de supc rioridade» ou, pelo contrário, «submisso», «respeitoso», «ami gável» ou «hostil»; «sincero», «franco» ou «desconfiado» «insincero», «confiante» ou «aberto», etc. Pode pedir-se algum coisa a alguém de maneira «impertinente» ou falar, em gera;

427 impertinentemente. Pode recusar-se este pedido muito «atencio­ samente» ou fazê-lo de maneira indelicada, brutal ou áspera. Consoante se fala com o outro interlocutor de modo «amigável» ou «polido» assim ganhamos a sua afeição ou o tornamos reni­ tente, o levamos a simpatizar connosco ou, pelo contrário, a invejar-nos e a detestar-nos, etc. Se, porém, não considerarmos apenas os modos de falar no diálogo mas também diversos tipos de alocução, p. ex., um discurso numa assembleia popular ou um sermão ou uma exortação à luta, encontramo-nos novamente perante uma outra série de modos de falar com os quais se pretende influenciar os ouvintes desta ou daquela maneira. Pode também conceder-se que em cada um desses modos de falar se dá expressão a algo da alma do orador (mais ou menos clara e voluntàriamente); mas com isto não se esgota a função do modo como as palavras e frases são pronunciadas. Porque tudo depende das conseqüências que possam advir da expressão con­ sumada e, em relação com isto, de ela ser ou não utilizada mais ou menos intencionalmente para um determinado fim *. E aqui deve notar-se que aquele com quem falamos é sempre mais ou menos sensível ao tom de quem fala e àquilo que esse tom exprime. Sob a impressão do que sentiu ou apreendeu conscientemente ele reage com um modo de comportamento correspondente, a que pertence também a sua resposta lingüís­ tica. Quando, p. ex., falamos «delicadamente» com alguém é certo que esta delicadeza pode ser apenas uma expressão da qualidade psíquica de quem fala; na maior parte dos casos, porém, ela é uma forma de convívio que tem a finalidade de criar no interlocutor a correspondente disposição favorável. E do mesmo modo, quando se repreende alguém num tom «áspero» não há primordialmente a intenção de dar assim a conhecer ao outro a insatisfação ou a ira do sujeito falante mas de o levar a reconhecer como incorrecto o seu modo de agir e a modificá-lo correspondentemente. Portanto, na maior parte dos casos em que um estado psíquico adquire expressão por meios lingüísticos ou mímicos isto funciona, no contacto entre os indivíduos, não tanto como objectividade para a qual estamos expressamente voltados intelectivamente mas sim ape­ nas como uma observação marginal que nos instiga a novas acções. A acção-resposta (também a lingüística) provoca, porém, análogas reacções do primeiro interlocutor, de modo que no ' Mesmo quando ocultamos os nossos sentimentos e falamos muito «calmamente» podemos com isso muitas vezes pretender apenas levar os outros a uma disposição amigável para connosco.

428 decorrer do diálogo (activo) se atinge um ajustamento psicofísico de ambos os interlocutores e um jogo de conjunto das reacções-resposta com as vivências, pensamentos, sentimentos, dese­ jos, etc., que nelas se revelam. Existe então um processo dialógico de polémica, de luta ou actuação conjunta das personagens que falam, as quais com as suas mutações psíquicas constituem apenas um factor relativamente heterónomo neste processo. Assim é quando a influência mútua dos interlocutores se exerce imediatamente durante o diálogo. Mas há também con­ seqüências mediatas do diálogo ou das palavras pronunciadas que só se manifestam algum tempo depois de consumado aquele. Também estas conseqüências de manifestação tardia podem ser intencionadas pelo discurso das personagens interpretadas. Tais conseqüências podem, designadamente, ser, p. ex., outras dis­ cussões entre as personagens em acção, de modo que todo o espectáculo teatral se apresenta como uma cadeia de destinos humanos que se desenvolvem em diálogos. A literatura «dra­ mática» existente, com a sua extraordinária riqueza de formas diferentes de apresentar a coexistência dos homens em processos dialógicos, poderia mostrar-nos ao mesmo tempo da melhor maneira a multiplicidade das funções que a linguagem pode desempenhar nessa coexistência. No entanto, basta por agora o que atrás se disse. Será, porém, necessário acrescentar ainda uma observação. E nomeadamente numa direcção talvez um pouco inespe­ rada. Há um efeito especial do facto de os homens falarem uns com os outros e de conseguirem com essa fala revelar os pró­ prios pensamentos e vivências: é a influência exercida sobre si própria pela pessoa que fala, mais exactamente pela sua «expres­ são verbal». Através da fala os nossos pensamentos e muitas vezes também as nossas decisões adquirem maturidade. Eles explicitam-se nas palavras pronunciadas e adquirem nelas uma forma desenvolvida. É certo que isto também pode acontecer no pensamento «silencioso»; mas, de qualquer modo, o falar com outros é um pensar «em voz alta» que nós próprios ouvi­ mos e que podemos consciencializar muito mais claramente do que quando pensamos isto ou aquilo apenas para nós próprios sem ter que o exteriorizar em forma lingüística. Em segundo lugar, porém, nós sentimos então muito mais fácilmente quando a nossa fala e o pensamento que nela se expõe podem ter êxito: designadamente quando ela é compreendida pelo outro interlocutor e quando o consegue levar a uma determinada acção ou convertê-lo a uma convicção. Mas para que obtenha êxito ela tem que se aperfeiçoar na forma lingüística: explici­

429 tar-sè nos seus membros, clarificar-se, justificar-se a si própria e assim ganhar poder de convicção e penetração. Ao falar consciencializamos de forma mais clara aquilo que muitas vezes nos escapa na vida «silenciosa» e nos agrava a consciência intelec­ tual e moral como um acto não consumado. Esta é, pois, a primeira forma da auto-influência através da conversa com outrem: os nossos pensamentos, e nós próprios, alcançam a maturidade. Mas o consciencializar-se a si próprio alcançado pela fala faz com que muitas vezes nos tornemos sensíveis e atentos aos próprios erros e leva-nos, assim, a dar o primeiro passo para uma transformação interior que sem a exteriorização pela fala talvez não fosse tão fácil de alcançar. Este acto de se expressar perante outrem tem muitas vezes sobre aquele que fala o poder da libertação: o que antes sem ser pronun­ ciado nos pesav.a ná alma desprende-se agora do. sujeito falante. Depois de um longo silêncio escondido e reprimido dentro de nós próprios algo surge através do diálogo à luz do dia e é lançado fora como um vestido usado sem que para isso fosse preciso um esforço especial. Ao falarmos com alguém descobrimo-nos não só perante alguém (amigo ou inimigo) mas tam­ bém perante nós próprios. E isto deixa-nos muitas vezes as mãos livres e o coração quente. Neste abrir-se perante o outro é-nos oferecida a possibilidade de uma comunidade de vida interior com essoutro que talvez nunca pudéssemos alcançar sem essa exteriorização mútua. É por isso que o nosso amor não alcança a maturidade nem se realiza enquanto não encon­ trar uma expressão lingüística lapidar. Mas isto aplica-se, no fundo, a todos os nossos sentimentos e atitudes quer se trate de amizade ou de inimizade, de admiração ou de profundo desprezo — todos eles querem ser pronunciados e alcançam neste ser-pronunciados a sua realização última. Mas nesta rea­ lização consuma-se também a configuração definitiva do indi­ víduo em questão: também ele, em última análise, alcança, na sua forma boa ou má, o perfil definitivo e a maturidade. Num espectáculo teatral nós somos, no fundo, testemunhas de um tal processo de maturação de um indivíduo — sem que essa ma­ turação tenha necessàriamente que ser entendida no sentido de um desenvolvimento positivo ou de uma evolução para melhor. Quando, p. ex., observamos o destino de Peer Gynt vemos como ele, em muitas situações e falas diferentes, amadurece pouco a pouco na sua alma singularmente vã até se descobrir final­ mente na sua forma acabada como indivíduo oco. Na vida silenciosa, sem os muitos conflitos dialógicos com outras pes­ soas, sem as conseqüências de cada um desses diálogos e da

430 acção que se concretiza no diálogo ele não se descobriria e não poderia chegar a ter consciência da sua verdade trágica. § 2.° São estas, portanto, as diversas formas da linguagem enquanto uma espécie de acção e acontecimento no espectáculo teatral. Em todas estas formas ela surge como uma pluralidade de formações carregadas de sentido cuja constituição, explici­ tação e pronunciação real constituem a já tratada participação da linguagem (apresentada) no desenvolvimento da acção no «drama». Ao mesmo tempo, porém, estas formações criam inten­ cionalmente, conforme o seu conteúdo, uma variedade de objec­ tividades e contribuem assim essencialmente para a constituição do mundo apresentado no espectáculo teatral. Nesta perspectiva, elas desempenham a mesma função que todas as formações lingüísticas nas obras literárias; e se elas se distinguem destas últimas a razão está apenas em que no espectáculo teatral elas não são o único (nem talvez o principal) meio de apresentação e por isso elas só têm que estruturar no âmbito do mundo apre­ sentado aquilo que não se constitui nem se mostra (ou não pode ser constituído nem mostrado) por meio dos aspectos visuais concretos realizados pelos actores. Através do sentido dos diálogos travados «no palco» ficamos sobretudo a conhecer muita coisa sobre a vida psíquica das personagens interpretadas que não é (ou não pode ser) expressa nem pelo seu comporta­ mento físico nem lingüístico e que muitas vezes é indispensável para a caracterização das personalidades. Por outro lado, somos informados também por esse mesmo sentido sobre objectos e eventos que não são visíveis no espaço apresentado «no palco» e no decorrer do tempo apresentado no âmbito da peça. Este complemento essencial do mundo apresentado tem como con­ seqüência que tudo aquilo de que somos testemunhas (como espectadores) é apenas um pequeno fragmento daquilo que a totalidade do mundo apresentado significa no espectáculo tea­ tral respectivo. Por isso, aquilo que é mostrado imediatamente ganha não só em inteligibilidade mas também em plenitude vital e carácter concreto, sem o que não existiriam pessoas e eventos na plenitude do termo mas apenas — se assim se pode dizer— «bastidores». Mas sem estes «bastidores» também todo o resto projectado de um modo apenas lingüístico nunca poderia alcançar a vivacidade e plenitude de aparecimento que é pos­ sível termos no espectáculo teatral. Aí reside precisamente a importância decisiva da apresentação extra-linguística no espec­ táculo teatral. § 3.° Assim se apresentam, digamos, de um ponto de vista puramente anatómico a função e a relação mútua dos dois

431 diferentes meios de apresentação no espectáculo teatral. Simul­ táneamente, porém, revela-se aí a função destes dois meios de apresentação em relação ao espectador que está ligado ao espec­ táculo teatral e nele descobre e apreende uma obra de arte de tipo muito especial. Ao que parece, as funções que o texto principal tem que desempenhar em relação ao espectador são as mesmas das palavras pronunciadas por uma das personagens interpretadas em' relação ao seu interlocutor: são, realmente, as mesmas funções de apresentação, de expressão, de comunicação e de influência da linguagem. A diferença essencial do espectador em relação ao interlocutor (apresentado) a quem se dirigem aquelas palavras faz que também a função das mesmas palavras se modifique para o espectador. Pois, em primeiro lugar, o espectador encontra-se, por assim dizer, fora do mundo apre­ sentado no espectáculo teatral; em segundo lugar, ele não é um interlocutor no diálogo e também não participa na acção dramática; e em terceiro lugar, finalmente, ele é «espectador» que durante a representação vive, se não exclusivamente pelo menos predominantemente, numa atitude estética e tem em vista a compreensão da obra de arte ou a constituição do objecto estético que se vai estruturando com base nessa com­ preensão. Desta diferença resultam também, por assim dizer, diferentes postulados quanto àquilo que as mesmas palavras do texto principal têm que realizar nas suas múltiplas funções, por um lado, em relação às outras personagens interpretadas e, por outro lado, em relação aos espectadores. E da diversidade destes postulados resultam depois também diferentes exigências que se propõem à estruturação das palavras pronunciadas parâ que estes postulados possam ser realizados por elas. Já deparámos com um caso da diversidade daqueles pos­ tulados no chamado drama «naturalista». As palavras pronun­ ciadas pelas personagens interpretadas devem ser organizadas de modo a serem tanto quanto possível «naturais» e a dirigi­ rem-se exclusivàmente ao outro interlocutor. Têm, assim, que ser organizadas apenas em atenção à situação a partir da qual são pronunciadas e ao efeito que devem exercer sobre o inter­ locutor; ao mesmo tempo, porém, elas têm que ser ouvidas pelo espectador na sala e causar nele uma certa impressão1

1 Exceptuó1o caso em que o espectáculo teatral é um mistério no qual o público concentrado no teatro deve,: de algum modo, participar activa­ mente. Limito-me, pois, apenas a casos ¡em que o público observa, numa atitude estética, o espectáculo teatral como uma obra de arte.

432 para lhe provocar a fase correspondente da vivência estética e lhe «agradar». Aquilo que com base na compreensão deve des­ pertar no interlocutor, p. ex., receio e atitude de repulsa deve ser compreendido pelo espectador apenas no seu conteúdo de sentido e expressão e apreendido na sua função artística para se chegar a uma reacção estética, especialmente a um agrado ou desagrado. Se surgisse também no espectador receio, ira e reacção de repulsa então isso aconteceria por acção da com­ preensão estética. O espectador tem que estar desde o inicio numa posição de distância emocional em relação ao que se diz e ao que acontece no mundo apresentado para que não se sinta, do mesmo modo que a personagem interpretada que é interpe­ lada, ameaçado e, portanto, não responda também do mesmo modo que aquela personagem. E são as mesmas palavras pro­ nunciadas que devem produzir estes resultados diferentes. Se elas fossem realmente as mesmas em toda a acepção nunca conse­ guiriam chegar a reacções tão diferentes de duas testemunhas diversas do discurso. Algo nelas, portanto, tem que ser para o espectador diferente do que é para as personagens interpre­ tadas; de outro modo, a diversidade dos seus efeitos sobre os espectadores e sobre aquelas personagens seria não só incom­ preensível mas também impossível. Se as palavras ditas «no palco» forem organizadas no sentido do naturalismo então a diferença procurada não pode consistir em nenhuma caracte­ rística do lado fónico das formações lingüísticas em questão nem em qualquer momento do seu sentido: o espectador deve, pois, apreender estas formações nos mesmos traços e até nas mesmas funções por elas desempenhadas que elas têm para as personagens interpretadas no espaço apresentado. A única dife­ rença que então ainda é possível consiste no diferente carácter ontológico das palavras pronunciadas pela personagem interpre­ tada. Estas palavras possuem, na verdade, para as personagens interpretadas um carácter de realidade, i. é, estas personagens consideram o ser-pronunciado destas palavras como um facto dentro do mundo (apresentado) que lhes é comum, ao qual elas próprias pertencem, enquanto os espectadores na sala conside­ ram as palavras pronunciadas e o seu ser-pronunciadas apenas como algo «representado», exposto através dos meios da arte, mas que não existe verdadeiramente no mundo real. Precisa­ mente por isto, as palavras realmente pronunciadas pelo actor não se identificam com as palavras apresentadas e apenas «representadas»; ou seja, o espectador finge não reparar (ou, num certo sentido, «esquece») que as palavras da personagem representada, que pertencem ao mundo apresentado, «na rea-

433 lidade» são pronunciadas pelo actor e só valem no mundo apenas apresentado do espectáculo teatral respectivo. No entanto, em todos os espectáculos teatrais não natu­ ralistas existe uma outra intenção. Neste caso, as palavras (formações lingüísticas) que pertencem ao texto principal do espectáculo teatral adquirem determinadas particularidades que as tornam capazes de influenciar estéticamente o público na sala do teatro, ou seja, numa expressão menos exacta, de lhe agradar. As falas de cada uma das personagens interpretadas são, p. ex., ditas em verso ou entoadas de uma certa maneira que no sentido da moda (ou estilo) dominante na obra ou na época em questão é uma «declamação» e não um falar «natural». As personagens interpretadas, porém, comportam-se como se não reparassem que se trata de versos ou declamações que muitas vezes em nada se ajustam à situação entre elas \ Em vez de se entenderem rápidamente sobre um estado de coisas, tira­ rem daí conclusões práticas e agirem rápidamente para, p. ex., evitar uma catástrofe elas declamam longas tiradas, respondem com expressões igualmente longas e artificiais e agem como se tudo isto fosse perfeitamente adequado e natural para agradar aos espectadores. No teatro antigo estas tiradas nem sequer eram dirigidas aos outros interlocutores — os actores voltavam-se simplesmente para os espectadores, com diferentes expressões somáticas e gestos que deviam dar a entender ao espectador aquilo que eles faziam e viviam, como se as outras personagens interpretadas que se encontravam no mesmo espaço apresentado não precisassem de ver e compreender. As funções de expressão «naturais» do discurso são perturbadas ou mesmo asfixiadas no seu germe porque a entoação dos versos não permite a sua manifestação. A música do verso interfere mesmo muitas vezes no sentido do discurso porque despreza os acentos exigidos pela função sintáctica e frequentemente cria efeitos que lhes são contrários. Por outras palavras: a melodia da frase é muitas vezes quebrada pela melodia do verso, a última não se submete à primeira. Naturalmente que não tem que ser assim; mas quando assim é, isso é apenas uma expressão da diversidade de postu­ lados que são propostos ao texto principal do espectáculo tea­ tral por parte daquelas funções que se dirigem ao público e, por outro lado, das funções que as formações lingüísticas do

1 Isto acontece num grau ainda muito elevado na ópera dos tempos modernos, em que os «heróis» — que são, p. ex., participantes de um drama burguês (cf. Madame Butterfly) — não notam que eles e os seus concida­ dãos cantam continuamente embora devessem apenas falar. 28

434 texto principal têm que desempenhar dentro do mundo apre­ sentado. A arte dos grandes dramaturgos pode criar obras nas quais — embora elas não sejam «naturalistas»— se alcança afi­ nal uma certa harmonia entre as diversas exigências postas às formações lingüísticas do texto principal. Mas apenas uma har­ monia e não uma total eliminação das diferenças na organização das formações lingüísticas para o público e para as personagens interpretadas. A «falta de naturalidade» é então reduzida a um mínimo, mas exige ainda um certo abstrair recíproco por parte das personagens interpretadas caso as mesmas devam continuar a ser membros de um mundo «natural» (embora, evidentemente, apenas representado). Aliás, é ainda possível um outro caso, em que as personagens interpretadas devem ser desde o início figuras fictícias, puramente poéticas, às quais se pode permitir que também na sua acção lingüística elas se comportem com tanta «falta de naturalidade» como na sua vida psicofísica (é o caso das figuras que aparecem no Anel dos Nibelungos, de Wagner, e na Tempestade, de Shakespeare). Tal como o seu aspecto exterior, as suas qualidades psíquicas ou em geral os seus caracteres são desde o início apenas do mundo da «fábula», assim também o seu comportamento lingüístico mútuo se pode organizar de maneira completamente diferente das funções «na­ turais» da linguagem. Então, toda a realidade apresentada é estruturada segundo os princípios do efeito estético sobre o público no sentido de um determinado estilo artístico e a este princípio básico se deve submeter (ou simplesmente: se sub­ mete) então também a organização da linguagem apresentada. Só têm depois que se encontrar formas de organização fónica e significativa do texto principal tais que as funções da lin­ guagem nas relações lingüísticas daquelas pessoas fictícias umas com as outras se exerçam realmente e que, portanto, subsista a possibilidade de compreensão lingüística recíproca e da in­ fluência mútua dos «heróis». Levar-nos-ia muito longe o desen­ volvimento pormenorizado deste assunto. Devemos, no entanto, salientar que se abre' aqui um vasto e interessante campo de investigação sobre peças isoladas que nos inicia nos arcanos da arte extraordinàriamente multimoda da organização da lingua­ gem ao serviço do espectáculo teatral e dos seus efeitos artísticos ou estéticos.

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